A agenda de Paulo Guedes é o liberalismo autoritário de Jair Bolsonaro
Com a extensa agenda de reformas entregues ao Congresso esta semana, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está dando sua tacada mais ousada.
É uma ousadia vista como o bem ou como o mal, tudo depende da concepção do observador. Mas, independentemente disso, ela é a expressão viva do seu pensamento radical-liberal: uma agenda que, entre outras coisas, passa pelo o que os liberais gostam de chamar de modernização do Estado brasileiro: a reafirmação da visão negativa sobre o serviço público, a revisão do pacto federativo, controle de gastos e o afrouxamento das regras de um dos grandes avanços civilizatórios do país nas últimas décadas, a obrigação dos gastos em saúde e educação.
Ninguém pode dizer que foi pego de surpresa. Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter atravessado a campanha eleitoral sem participar de qualquer debate com seus adversários, nem expor qualquer ideia digna do nome em matéria econômica, Paulo Guedes falou bastante ao longo da disputa. A agenda do candidato Bolsonaro era uma agenda ideológica e politicamente conservadora e economicamente liberal.
A dúvida, até aqui, sempre foi o quão liberal se mostraria a agenda do presidente Bolsonaro: se um liberalismo à moda Guedes em estado puro, ou se em sua versão mais moderada.
Depois da reforma da Previdência, a agenda apresentada pessoalmente por Bolsonaro, ao lado de Guedes e do ministro Onyx Lorenzoni, ao Congresso é uma oportunidade não só para modular o liberalismo econômico bolsonarista como para avaliar os limites e possibilidades de convivência entre um programa liberal econômico e uma estratégia política autoritária.
É um novo batismo de sangue de Paulo Guedes e de sua agenda. Afinal, o mesmo Congresso de que o ministro precisará nas votações das propostas de emenda à Constituições, dos projetos de lei e do pacote de estímulo ao emprego foi aquele tratado como hiena pelo presidente Jair Bolsonaro (congressistas, ministros do Supremo Tribunal Federal e opositores em geral).
O presidente e seus apoiadores mais bélicos criaram um ambiente politicamente devastador para a democracia.
Sua milícia digital achaca adversários como inimigos a serem extintos. O presidente ameaça cassar concessões de TV (Globo) e defende boicote de anunciantes a um jornal (Folha). Seu filho Eduardo sugeriu, na hipótese de uma suposta radicalização da esquerda, a edição de um novo AI-5, o mais tenebroso instrumento político adotado no país nas últimas décadas. Sua agenda em áreas relevantes, como educação, meio ambiente e relações exteriores, é mais do que conservadora (que não cito aqui como xingamento, como boa parte dos críticos do governo): é reacionária, promotora de retrocessos.
É preciso, portanto, muita separação na cabeça de um suposto liberal para ignorar as afrontas acima e concentrar-se na agenda pró-mercado.
A tacada de Guedes é incrivelmente ousada tanto por testar uma mudança profunda na visão econômica sobre o Estado brasileiro quanto por explorar os limites dessa convivência entre liberalismo econômico e autoritarismo político.
Não acredito nem um pouco num liberal pela metade, embora reconheça que, historicamente, esta é uma convivência plenamente possível. Aqui vale lembrar a feliz expressão do jovem filósofo francês Grégoire Chamayou, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica, na França: o liberalismo autoritário.
O liberalismo autoritário é aquele que combina, sem alguma contradição fundamental, liberalismo econômico com autoritarismo político. Nesse jogo, a democracia política não é o mais importante, e sim a economia liberal.
Se a célebre frase de Friedrich Hayek ("Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo") expressa essa visão, há um histórico entre alguns relevantes liberais brasileiros sobre tal convivência. Não são poucos os liberais (econômicos) brasileiros, como Paulo Guedes, muitos luminares do mercado financeiro, que acreditam ser possível separar o programa econômico que defendem da estratégia política autoritária.
Eugênio Gudin, pai dos economistas liberais brasileiros, foi um desses. Escrevi um livro sobre ele, em coautoria com o historiador Márcio Scalercio (Insight, 2012) e uma das características mais marcantes que aprendi nas pesquisas sobre o personagem foi justamente essa convivência.
Gudin era um elitista acima de tudo. Daqueles que rejeitavam a ampliação do direito ao voto por considerar que ainda estávamos em estágio de atraso – incapazes, portanto, de votar com qualidade e consciência. Também nos via como fadados ao atraso pelo determinismo geográfico (faltava-nos um clima temperado, como o argentino e o europeu) e pela herança ibérica (a eterna culpa dos portugueses).
Era um elitismo que se convertia num autoritarismo político.
Brilhantes como Gudin, a dupla liberal Octávio Bulhões e Roberto Campos assumiu a economia exatamente após o golpe de 1964. Era um outro Campos, não aquele que, até a década anterior, via no Estado o grande indutor da modernização e da infraestrutura no país (não à toa ajudou a criar o BNDES, na época sem o S).
Mas, enquanto Castello Branco iniciava o regime que duraria 21 anos, a dupla promovia uma das mais profundas mudanças na estrutura econômica do país.
Um ativismo reformista que, em pouco mais de quatro meses de debates e votações no Congresso, instituiu uma reforma bancária inédita, criou o Banco Central, instituiu o Sistema Financeiro de Habitação, reformou o Imposto de Renda, entre outras medidas, como alterações na Lei de greve e no Estatuto da Terra.
Alguns anos depois, Campos dedicaria loas à "disciplina social" e "coesão governamental" e celebraria uma definição adequada à sua posição: o autoritarismo consentido.
Paulo Guedes é um herdeiro dessa tradição. Vide o modo como minimiza o permanente ataque dos Bolsonaros à democracia, como ficou claro na sua exposição à Folha de S.Paulo, ou como tratou a diferença entre pobres e ricos no uso do dinheiro ("Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo", disse ele, na mesma entrevista).
Um ministro da Fazenda vive de prova dos nove no seu diálogo (ou conflito) permanente com o Congresso, sobretudo em governos com bases frágeis (meu ex-chefe Joaquim Levy que o diga), e mais ainda com a população.
Guedes viverá novos testes, em meio à tentativa de recuperação da economia e do emprego, a uma inflação abaixo dos 4% (mas muito mais sintoma da estagnação do que mérito), um déficit nas contas públicas que insiste em permanecer alto e em privatizações ainda muito aquém do que ele desejava. Para completar, um grande risco de instabilidade internacional, sendo que o exterior é fundamental para uma retomada do crescimento brasileiro.
Mas não dá para negar sua coragem.
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