Rodrigo de Almeida http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br Reflexões e análises sobre questões econômicas, sem economês, sob a ótica da economia política e seus impactos sobre a sociedade, a democracia, o capitalismo e as instituições. Fri, 20 Dec 2019 07:00:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Debate real na Amazônia é sobre morte e desenvolvimento http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/12/20/debate-real-na-amazonia-e-sobre-morte-e-desenvolvimento/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/12/20/debate-real-na-amazonia-e-sobre-morte-e-desenvolvimento/#respond Fri, 20 Dec 2019 07:00:04 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=101 Dos infames ataques a Greta Thunberg à evidente violação de direitos no caso dos quatro brigadistas presos injustamente em Alter do Chão (PA), passando pelos delírios conspiratórios envolvendo financiamentos internacionais a organizações não-governamentais, o Brasil do bolsonarismo ainda deve respostas efetivas a duas questões centrais para a Amazônia e o futuro do país: as ameaças e violências contra os guardiões da floresta e o modelo de desenvolvimento concebido para aquela região.

Sobre o primeiro problema –a violência–, é importante reafirmar o que vêm alertando ambientalistas, ativistas, representantes de comunidades tradicionais, jornalistas e observadores mais atentos ao problema: os incêndios arrefeceram com a chegada da estação das chuvas, mas o medo, a tensão, a ameaça e a morte rondam a floresta.

Como mostrou um breve e duro relato feito direto da floresta por Eliane Brum, que circulou com força nas redes sociais, ali se dorme com uma morte –e acorda-se com outra morte, ou outra ameaça, ou outro recuo. Esta frase, segundo ela, é comum: “Vão me matar”.

Ou, como sintetizou Jonathan Watts, editor global de Meio Ambiente do jornal britânico “Guardian”, a Amazônia se assemelha cada vez mais a um campo de batalha –e é impossível não sublinhar o papel do presidente Jair Bolsonaro para isso, ao elevar o tom do discurso, criminalizar o trabalho de ONGs ambientais, enfraquecer o trabalho de proteção das florestas e incentivar mineradores, agricultores e grileiros a tirarem vantagem do estímulo presidencial.

A tensão não nasceu com Bolsonaro, mas foi amplificada pelo encorajamento bolsonarista.

As ameaças contra a vida são acompanhadas também de ameaças contra liberdades e direitos – razão pela qual o caso dos brigadistas atraiu a atenção do Projeto Aliança, rede que reúne advogadas e advogados de peso, a exemplo de Beto Vasconcelos, ex-secretário Nacional de Justiça e idealizador do projeto, Theo Dias, Juliana Santos, Antônio Mariz de Oliveira, Maíra Salomi, Fernando Cunha, Hugo Leonardo, Flávia Rahal, Augusto Botelho, Davi Tangerino e Patrícia Pamela. Marcelo Chilvarque atua como coordenador-executivo da rede.

A Aliança tem assumido casos emblemáticos de violação de direitos e liberdades. Parte reforçou, no caso de Alter do Chão, a defesa dos quatro jovens – Daniel Gutierrez, João Romano, Gustavo Fernandes e Marcelo Cwerner – e também das entidades citadas no caso, o WWF e o Projeto Saúde & Alegria (PSA).

E vem do Saúde & Alegria (organização com mais de 30 anos de atividade na Amazônia e conduzida por dois craques, os irmãos Caetano e Eugênio Scannavino) alguns dos melhores alertas e argumentos em relação ao segundo ponto: que modelo de desenvolvimento desejamos para a Amazônia?

Como afirma Caetano Scannavino, este é o grande debate a fazer, e não sobre paranoias conspiratórias nem tampouco sobre o embate raso em torno de uma falsa oposição entre desenvolvimento e proteção ambiental. ONGs como o Saúde & Alegria ou ativistas como os irmãos Scannavino não são contra as facilidades da energia, dos transportes, da internet ou outras tecnologias. Ninguém é contra o agronegócio nem a favor do fim das florestas –sem elas não há água, e sem água não há agricultura.

Caetano Scannavino lembra que, em vez de brigar com os satélites ou minimizar dados crescentes da Amazônia, o que é preciso trazer para a mesa é o fato de termos devastado uma área equivalente a duas Alemanhas de florestas, para que 63% dela fosse ocupada por pastagens de baixíssima produtividade, com menos de um animal por hectare, e outros 23% fossem abandonados.

Ouvi esses números há poucos dias e, frente a eles, é inconcebível que autoridades resumam o tema à presença de Leonardo di Caprio ou à inversão da lógica –quando guardiões da floresta são acusados de atentar contra ela.

Os dados são da Embrapa e do Inpe, e não é demais repetir: menos de 15% das áreas desmatadas se tornaram efetivamente produtivas, se muito. “Desmata-se para ficarmos ainda mais pobres”, resume o diretor da ONG.

Eis o ponto: para fazer, de fato, a diferença, o Brasil precisaria estar blindando as florestas e focando no aumento da produtividade nas zonas agrícolas já consolidadas do bioma. Como lembra Scannavino, é possível fazer mais com menos terra, menos desmatamento e menor pressão sobre as Unidades de Conservação e Territórios Indígenas. É possível fazer mais incentivando técnicas modernas e mais amigáveis ao meio ambiente.

“É insano”, diz ele, “que o país com a maior biodiversidade do planeta não tenha até agora uma política robusta de bioeconomia, voltada para o processamento de produtos da floresta como o açaí, cacau, cupuaçu, castanha, andiroba e tantos outros”.

O cientista Carlos Nobre já alertou uma vez que, enquanto os sistemas agroflorestais com açaí podem render anualmente entre US$ 200 e US$ 1.500 por hectare, o gado fica em torno de US$ 100 por hectare. Com o enorme potencial de sua biodiversidade, o Brasil precisa de uma indústria da biodiversidade, e de uma ciência e tecnologia que desenvolva esse potencial. Nenhum governo, Fernando Henrique, Lula e Dilma incluídos, deu a atenção devida a isso.

Mais um argumento: o Brasil assistiu a quedas expressivas no desmatamento entre 2004 e 2012 e, mesmo assim, o PIB agropecuário da Amazônia Legal teve formidável alta –ou seja, foi capaz de crescer nesse período com ganhos de produtividade sem ampliar a área deflorestada.

Enquanto isso, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi à Europa pedir dinheiro para a floresta, mesmo diante de um dado inaceitável: o Fundo Amazônia deve fechar o ano com R$ 2,2 bilhões parados, nenhum projeto aprovado e o menor valor desembolsado em seis anos.

Caetano Scannavino analisa esse descompasso ao blog: “Esse alinhamento propositivo em torno do social, ambiental e econômico é a base da maioria dos projetos das ONGs e da academia que vêm sendo apoiados a partir de doações nacionais e/ou de fora. Não existe repasse de dinheiro sem projeto. Por isso, estranha essa tentativa do ministro Salles buscar fundos internacionais sem projeto algum, sem dizer o que irá fazer com eles. Cheguei a ouvir na Espanha que o ministro sequestrou a Amazônia e veio pedir o resgate na COP [conferência do clima da ONU]”.

Usando a ponderação de Scannavino, acrescento: receber recursos externos sem projeto na mão, como tenta fazer o ministro, é o que pode parecer internacionalização da Amazônia.  Isso, sim, é o que precisa ser investigado. Mais eficaz seria buscar recursos internacionais para dar escala a projetos demonstrativos das áreas socioambientais, bioeconômicas muitos dos quais oriundos das ONGs e centros acadêmicos que o governo despreza e criminaliza.

O Brasil tem sido o país onde os óbvios precisam ser reafirmados como pérola inovadora. Uma dessas obviedades para não esquecer: uma floresta em pé tem mais valor do que caída. Outra é sobre a defesa da vida. Afinal, a morte e o medo não exibem beleza nem riqueza sequer na poesia.

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Retomada do crescimento só virá para valer com menos tensão política http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/29/retomada-do-crescimento-so-vira-para-valer-com-menos-tensao-politica/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/29/retomada-do-crescimento-so-vira-para-valer-com-menos-tensao-politica/#respond Fri, 29 Nov 2019 07:00:33 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=95 Se quiser transformar as recentes boas notícias de recuperação econômica em ventos favoráveis no longo prazo, o governo de Jair Bolsonaro precisará ter em mente o óbvio que ignorou nesses seus 11 meses iniciais: é improvável um crescimento saudável e sólido num ambiente politicamente conturbado. Crises políticas são combustível certo para crises econômicas, e a retomada será limitada enquanto o governo prosseguir com a tensão e a confusão como método político.

Convém um alerta antecipado: a turbulência política a que me refiro aqui não é a “polarização” do debate público. Nem a equivocada e autoritária leitura política do ministro da Economia, Paulo Guedes, que enxergou uma ameaça chilena no Brasil em sua menção, em tom de ameaça, ao AI-5 redivivo.

A polarização se tornou desculpa para diferentes correntes políticas, especialmente do centro, compensarem sua própria incapacidade de posicionamento. Na política, voz é para quem tem – e hoje o presidente Jair Bolsonaro, de um lado, e o ex-presidente Lula, de outro, são aqueles que melhor exibem capacidade de garantir potência a suas ideias, goste-se ou não delas. Ciro Gomes tenta, mas enfrenta a resistência da mídia no tratamento dos seus discursos.

Polarização está longe de significar crise ou turbulência política.

Já a investida retórica de Guedes pode não ser a peça principal da turbulência política, mas é parte integrante: uma turbulência essencialmente originada e cultivada dentro do próprio governo. Com suas ações firmes para intimidar o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público e a mídia, o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos são os maiores protagonistas da crise política, da confusão e da sabotagem institucional que podem atravancar a recuperação da economia. Até a saída de Lula da prisão, era deles o monopólio da oposição ao próprio governo.

Como muitos analistas têm sublinhado, há sinais claros de que o Brasil atravessa um processo de recuperação econômica. Lentamente, mas atravessa. As previsões sugerem o terceiro ano de crescimento do PIB na faixa de 1%, e para 2020 as projeções oscilam em torno de 2%. É pouco, muito pouco, mas não custa ter um olhar benevolente neste caso: o Brasil foi ao fundo do poço e hibernou em demasia nos últimos anos, numa letargia com raízes econômicas e também (ou principalmente) políticas, a partir das turbulências políticas enfrentadas em 2014, 2015, 2016 e 2017. E até poucos meses atrás as previsões para 2019 beiravam 0,5%.

Resta saber se o país aguenta uma recuperação tão lenta assim. A própria equipe econômica percebeu que não, como demonstram suas iniciativas quase envergonhadas de estímulo à demanda – atitudes que contradizem a visão original do ministro Paulo Guedes. Ainda que, em entrevista recente a Alexa Salomão, tenha pedido 4 anos para que seu projeto resulte em crescimento econômico e bem-estar para a população. Pode ser tempo demais.

O fato é que a combinação entre aumento de crédito, juros mais baixos, melhora da construção civil e liberação de recursos do FGTS, as previsões se tornaram muito mais animadoras. Nada exuberante, repito, mas uma ótima notícia depois de três anos de avanço do PIB na casa de 1%.

Essa recuperação exibe limites claros, e aposto dizer que o mais forte deles está na política. Sem um quadro político mais pacificado, menos gerador de incertezas e mais consequente, a lentidão da recuperação se tornará ainda maior – sob risco de a impaciência nacional produzir danos igualmente graves.

Há quem ignore a natureza política das crises econômicas, assim como a natureza econômica das crises políticas. Muitas vezes são irmãs siamesas.

No verão de 2016, no início da fase mais aguda da crise do segundo mandato da então presidente Dilma Rousseff, poucos meses antes do impeachment, o insuspeito FMI divulgou um estudo exemplar e estarrecedor. O Fundo reduzia a expectativa da economia brasileira para aquele ano e para 2017 e enxergava a piora do cenário como resultado de três fatores essenciais: um era a diminuição do crescimento chinês; outro era a instabilidade do Oriente Médio; e o terceiro era a continuidade da crise política.

O mais forte trecho do relatório alertava não para fatores restritos à economia brasileira, e sim à instabilidade política e às investigações da Operação Lava Jato. O governo havia cometido muitos erros na condução da economia, mas o FMI reconhecia ali o peso significativo da política sobre a instabilidade econômica.

E sobravam maus exemplos políticos: uma oposição (leia-se: a direção do PSDB, nas mãos do candidato tucano de 2014, Aécio Neves) incapaz de reconhecer sua derrota desde o primeiro dia após a eleição; um presidente da Câmara chamado Eduardo Cunha, com todas as suas pautas-bomba capazes de minar o esforço do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, para reduzir os déficits públicos crescentes; e o PT, partido da presidente, atuando em oposição às principais medidas do próprio governo.

Dilma e seus principais porta-vozes tentaram mostrar a natureza política daquela crise econômica. Sem muito crédito na praça, pouco ou nada foram ouvidos.

Michel Temer também foi vítima do vendaval político como impeditivo da retomada mais vigorosa da economia – no seu caso, a instabilidade surgida de suas conversas nada republicanas com o empresário Joesley Batista tisnou os esforços do então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles e bloqueou aspirações mais elevadas até o fim do seu mandato.

Com Bolsonaro a coisa se torna mais autofágica, com o autoritarismo como prática política e tendo Guedes como co-partícipe de um liberalismo autoritário. Muita gente achou estranha quando escrevi, há mais de dois meses, que o ministro, ao se adaptar a Bolsonaro, havia criado a economia política da borduna, a economia política da radicalização, do desvario e da canelada. Suas ofensas retóricas já se desenhavam ali, muito antes de tomar forma ameaçadoramente autoritária, com sua recente menção ao AI-5.

O autoritarismo como valor, a tensão política como método e o radicalismo liberal como norte econômico não tendem a gerar boa coisa num país de enorme vulnerabilidade social. O modelo chileno, preferência de Paulo Guedes, foi bem-sucedido na promoção do crescimento, mas também gerou profunda desigualdade de renda e riqueza. (A renda do Chile é uma das mais concentradas do mundo, uma das razões da explosão social que se vê naquele país.)

Com tais consequências numa população menor do que a que ocupa a Grande São Paulo, imagine num país de dimensões continentais como o Brasil, que tem uma população superior a 200 milhões de pessoas, das quais 52 milhões na pobreza e mais de 13 milhões na extrema pobreza. Aqui, mais do que nunca, é preciso o respeito aos pesos e contrapesos institucionais e sociais, sem o quê os riscos são fortemente inflamáveis.

Mas na sua estratégia de guerra de todos contra todos, radicalismos retóricos e práticos e episódios de intimidação explícita, o governo coloca fogo onde se pede água. Opta pela crise política ao tentar superar a longa crise econômica.

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Lula mostrou que suas ideias econômicas envelheceram http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/13/lula-mostrou-que-suas-ideias-economicas-envelheceram/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/13/lula-mostrou-que-suas-ideias-economicas-envelheceram/#respond Wed, 13 Nov 2019 07:00:04 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=86 A primavera lulista mostrou que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu a economia como o principal polo de oposição ao governo de Jair Bolsonaro e âncora do discurso para 2022. Mas caso se confirme o protocolo de intenções exibido no discurso em São Bernardo, no sábado (dia 9), Lula, o PT e a parcela da esquerda abraçada a eles deveriam conter a euforia e se preparar melhor para o debate que virá.

O que se viu na fala inicial após a liberdade recém-conquistada foi um rosário de ideias envelhecidas no campo econômico – problema de que o PT padece desde bem antes da última eleição presidencial. Lula e seu partido podem ter renascido como oposição, mas se quiserem liderar a esquerda rumo a 2022, precisarão reoxigenar seu programa, sair da mesmice e deixar de olhar o futuro com promessas do passado.

Como anotaram os editores do Relatório Reservado, Lula “reabriu seu antiquário de ideias”, demonstrando repetir velhos pontos de vista e argumentos. Não foi só o tempo de prisão que lhe fez mal. Especialmente na área econômica, faltam-lhe ideias bem oxigenadas, inovadoras e compatíveis com a mudança exigida pelos novos tempos.

Não me refiro aqui apenas ao modo como escolheu tratar um de seus alvos permanentes daqui para frente – além de Sergio Moro, Lula definiu como inimigo o ministro da Economia, Paulo Guedes, tratado como “entreguista”, “inimigo do povo”, “demolidor de sonhos”, “destruidor de empregos e de empresas públicas brasileiras”.

Esta é uma questão de como esta esquerda projeta o futuro e demonstra renovar (ou não) o pensamento e a prática diante dos desafios do século XXI.

O risco maior é repetir a linha adotada em 2018, quando a campanha petista parecia meramente pregar a “volta de Lula”, no sentido simbólico e também prático: replicava a mesma estratégia de governo nos tempos de Lula, como se ignorasse os novos parâmetros de problemas existentes no país. Retomava a pauta de programas emergenciais – Bolsa Família incluído – associada à virtude de investimentos industriais e financeiros que fizeram a festa em períodos anteriores.

Agora Lula e o PT têm a chance da renovação não cumprida em 2018, mas resta saber se exibirão vontade e competência para promovê-la até 2022. Pelo que se viu no discurso de São Bernardo, ainda estão longe disso. Bem longe.

O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos: a esquerda deveria ler os artigos de André Lara Resende

 

Não sou conselheiro deles, mas se fosse lhes sugeriria a leitura de uma das últimas entrevistas que o professor Wanderley Guilherme dos Santos – o mais importante cientista político brasileiro de nosso tempo – concedeu antes de morrer em seu apartamento no Rio de Janeiro, no dia 25 de outubro. Naquela que foi talvez sua última intervenção pública, Wanderley disse ao jornalista Miguel do Rosário: a esquerda precisa se informar melhor da chegada de uma nova corrente de ideias econômicas, que vem abalando a discussão dentro do seio liberal.

O professor se referia ali aos artigos do economista André Lara Resende, que passou a divergir radicalmente da posição de outros economistas liberais. “São artigos brilhantes e sóbrios, com argumentos bem articulados e que efetivamente trazem um desafio muito grande à ortodoxia monetarista tradicional”, disse Wanderley.

Segundo ele, “as organizações e partidos de centro-esquerda deveriam tomar consciência e se informarem mais profundamente destas disputas que estão ocorrendo dentro das direitas e do centro, buscando diálogos e formando alternativas políticas que seriam obviamente muito menos dolorosas do que estão sendo as políticas atualmente em curso no país”.

Para ele, a centro-esquerda brasileira oficial não tem sido capaz de formar uma coalizão entre atores políticos relevantes, nem formular alternativas viáveis do ponto de vista político, como as ideias econômicas apresentadas por André Lara Resende. “São políticas perfeitamente discutíveis para a construção de uma coalizão progressista, democrática e menos antipopular do que a que temos agora”, afirmou o professor.

Em diversos ensaios publicados originalmente no jornal Valor Econômico e depois estendidos e aprofundados em livro, André Lara Resende promoveu uma fratura no pensamento liberal brasileiro ao defender uma nova teoria monetária. Para ele, é preciso rever o dogmatismo fiscal que o pensamento ortodoxo liberal adotou. Responsabilidade fiscal, diz, não pode ser confundida com dogmatismo. O importante não é equilibrar o orçamento no curto prazo a qualquer custo, mas tributar e investir bem.

No âmbito internacional, há uma percepção crescente de que a teoria macroeconômica está em profundo questionamento, tanto pela insuficiência de seus diagnósticos quanto pela ineficácia das políticas que prescreve. Depois da crise de 2008, muita esperança foi depositada na política monetária e, ainda que esta tenha ido ao limite, colocando as taxas de juros em patamares mínimos, os efeitos sobre a economia mostraram-se insuficientes.

André Lara Resende também vem expressando dúvida se os juros altos são causados pelo déficit fiscal ou se são os juros que causam o déficit. Não foram poucos os economistas de linhagem liberal que o criticaram. Para o economista, a agenda de Paulo Guedes está na direção correta, mas a obsessão por equilibrar as contas públicas no curto prazo gera uma punição indevida sobre a população.

Estados e municípios estão quebrados, asfixiados, sem capacidade de prestar serviços essenciais à população. Foram fiscalmente irresponsáveis no passado, sim, mas isso não justifica o estrangulamento fiscal a que estão sendo submetidos – “a população não pode ser punida por irresponsabilidade dos políticos”, disse recentemente Lara Resende. O risco apontado por ele é que o dogmatismo fiscal (a obsessão de equilibrar as contas) poderá levar a uma reação política e social capaz de derrotar a agenda liberal.

É aí que entra a recomendação de Wanderley Guilherme dos Santos para que a centro-esquerda observe em profundidade a análise de um dos pais do Plano Real. O pensamento lulo-petista costuma cegar diante dos grandes feitos de seus governos, uma cegueira que os impede, por exemplo, de reconhecer erros adotados em certas práticas. E, como afirmou Guilherme Boulos, em bela entrevista a Jamil Chade, aqui no UOL, “uma esquerda que não reconhecer seus erros não pode apontar futuro”.

Como afirmou o próprio Wanderley Guilherme dos Santos, a despeito de todos os avanços no campo dos direitos e na elevação da renda de pobres e miseráveis, os governos petistas não foram capazes de preparar o Brasil para os desafios do século XXI, nem criaram condições para o país enfrentar as nações produtoras de tecnologia pós-revolução digital.

Sem diagnósticos como o de André Lara Resende, sem projetos que mirem o futuro e com a repetição de padrões e chavões expostos no retrovisor, a esquerda depende de Lula tende a repetir as mesmices pouco criativas e inovadora.

Conclusão: a esquerda carece não só da leitura de André Lara Resende, como também, e sobretudo, de Wanderley Guilherme dos Santos.

Formador de muitos cientistas sociais, Wanderley foi um precursor na defesa da democracia, defensor intransigente de um modelo de sistema representativo e um pensador original, capaz de fazer seus pares reverem ideias estabelecidas. Era o que exibia com brilhantismo em suas palestras, na revista Insight-Inteligência, que criou juntamente com o jornalista Luiz Cesar Faro (e na qual tive o privilégio de sucedê-lo, por indicação do próprio), em livros, artigos e entrevistas, nos quais revisava o lugar-comum vigente e desabonava, com sua inteligência, o pensamento limitado daqueles que se revelam convictos da própria virtude.

Que a esquerda o releia e o relembre.

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O maior erro da Lava Jato não foi perseguir Lula, mas destruir empresas http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/09/o-maior-erro-da-lava-jato-nao-foi-perseguir-lula-mas-destruir-empresas/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/09/o-maior-erro-da-lava-jato-nao-foi-perseguir-lula-mas-destruir-empresas/#respond Sat, 09 Nov 2019 07:00:27 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=76 A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância está longe de gerar apenas efeitos jurídicos e institucionais. Ou ter forte impacto sobre a liberdade e o futuro do ex-presidente Lula e de outros cerca de 4.800 potenciais beneficiados pela mudança na jurisprudência. Ela é parte também de um freio de arrumação sobre a Lava Jato, algo importantíssimo não só para a solidez de valores e direitos democráticos como para a economia brasileira.

Sim, essa é uma questão também econômica.

Parece claro que a mudança de entendimento dos ministros do STF integra uma mudança de cenário também na forma como sociedade e instituições veem o modus operandi da Lava Jato e suas consequências. Aos poucos, foi ficando evidente que, em nome do necessário e fundamental combate à corrupção, excessos foram cometidos às pencas. Pela Lava Jato e pelo próprio Supremo.

Agora prevaleceu no STF o que está explicitamente escrito na Constituição: a execução da prisão passa a se dar depois do trânsito em julgado. É o que está, como norma, no inciso XVII do artigo 5º, uma cláusula pétrea da Carta. E é o que define o artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja constitucionalidade era julgada pelo tribunal.

Há quem fale em casuísmo na decisão desta semana, mas é preciso lembrar também o casuísmo que motivou a mudança anterior, que se deu em 2016, no calor do confronto entre pesadas pressões pró-impeachment. Mas deixo a análise política e institucional para tantos outros.

O ponto aqui é o econômico.

E nada melhor do que lembrar de um dos primeiros e fundamentais estudos sobre o modelo de combate à corrupção instaurado no Brasil: “O espetáculo da corrupção”, livro do advogado Walfrido Warde, talvez o primeiro a descrever científica e racionalmente as consequências nefastas da Lava Jato (âncora principal desse sistema brasileiro de corrupção) para as instituições e para a economia.

Antes que as gralhas gritem, vale o alerta antecipado: nem Warde nem este blog defendem corruptos e a corrupção. Políticos e empresários corruptos devem ser punidos. Ponto.

Ter esta convicção, no entanto, não significa compartilhar com qualquer método destinado a puni-los, nem –principalmente– defender que, no afã de salvar o país da corrupção e do histórico de impunidade, adote-se um sistema que pune igualmente empresas geradoras de emprego e renda.

A essência da análise de Warde é: primeiro, a Lava Jato fez terra arrasada com setores inteiros da economia, e mesmo assim não acabou com a corrupção; segundo, seria possível depurar as empresas envolvidas em corrupção, sem destruí-las.

Conforme a tese do advogado, as empresas destruídas –e muitas outras ainda serão, pois ainda vivemos as consequências dos equívocos da Lava Jato– certamente não eram nada nobres. Seus gestores operavam, com os governos, a partir de práticas corruptas e odiosas. Mas eram nossas: davam empregos, geravam renda e garantiam o consumo. “Se era ruim com elas, ficou pior quando entraram em colapso”, escreveu Warde.

Como ele lembra, a maior parte das empresas alcançadas pela Lava Jato eram donas de usina de geração de energia, estaleiros, estradas, aeroportos e outros empreendimentos de infraestrutura. Ou seja, compunham uma indústria que representava a espinha dorsal da economia brasileira. Sua desgraça causou a paralisia de obras, o impasse sobre o destino de projetos de infraestrutura e, o que é pior, a depreciação de muitos outros.

Em outros lugares do mundo civilizado, o combate à corrupção, em casos similares, foca nos gestores corruptos –políticos, acionistas e executivos envolvidos em crimes que se misturam às atividades regulares das empresas. Em bom português: mandam-se os bandidos para a cadeia ou fazem-se acordos punitivos para eles (no caso norte-americano, por exemplo, a Justiça prefere muito mais ter dinheiro pago em multas e punições do que enviar gente para as prisões).

No Brasil, não. A sanha punitiva se estendeu dos políticos para os empresários e, destes, para as empresas. O resultado foi devastador: em cinco anos, o setor industrial brasileiro não se recuperou dos impactos da Lava Jato. Cálculos sugerem que o Brasil teve, nos primeiros três anos da operação, cerca de 2,5 milhões de demissões relacionadas à operação, se contabilizados somente os números diretamente impactados pelo rompimento de contratos entre empreiteiras e a Petrobras.

Uma delas, a Odebrecht, chegou a empregar quase 200 mil pessoas. Era uma das mais eficientes empresas de engenharia pesada do mundo. Em qualquer outro país, seria protegida –política e institucionalmente– e seus dirigentes corruptos iriam para a cadeia. Aqui se acredita que deixar quebrar uma empresa com donos e/ou diretores corruptos é sinal de punição e evolução. Não é, garante Warde. Acreditar nisso não passa de uma vendeta emocional.

Como diz o advogado, não há trabalho sem empresa, não há empresa sem Estado e não há Estado sem trabalho e sem empresários. Um ataque às empresas, descuidado e devastador como o que assistimos nos últimos anos, arrisca de morte a economia e as instituições.

Em síntese, combater a corrupção não significa promover vingança e ir arrastando com essa vingança o desenvolvimento econômico somente alcançado por meio de empresas e setores relevantes da economia. Assim como qualquer ato ou sistema destinado a livrar o país da corrupção e de personagens corruptos precisa atender a requisitos fundamentais relacionados aos direitos individuais.

Os artilheiros de Sergio Moro, como afirmou Reinaldo Azevedo, não descansam. Mas é uma artilharia que certamente vem arrefecendo, e a decisão do Supremo desta semana revela-se um capítulo adicional deste arrefecimento.

Aos poucos, o Brasil percebe que boas intenções não significam compactuar com o vale-tudo.

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A agenda de Paulo Guedes é o liberalismo autoritário de Jair Bolsonaro http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/06/a-agenda-de-paulo-guedes-e-o-liberalismo-autoritario-de-jair-bolsonaro/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/11/06/a-agenda-de-paulo-guedes-e-o-liberalismo-autoritario-de-jair-bolsonaro/#respond Wed, 06 Nov 2019 07:00:35 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=61 Com a extensa agenda de reformas entregues ao Congresso esta semana, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está dando sua tacada mais ousada.

É uma ousadia vista como o bem ou como o mal, tudo depende da concepção do observador. Mas, independentemente disso, ela é a expressão viva do seu pensamento radical-liberal: uma agenda que, entre outras coisas, passa pelo o que os liberais gostam de chamar de modernização do Estado brasileiro: a reafirmação da visão negativa sobre o serviço público, a revisão do pacto federativo, controle de gastos e o afrouxamento das regras de um dos grandes avanços civilizatórios do país nas últimas décadas, a obrigação dos gastos em saúde e educação.

Ninguém pode dizer que foi pego de surpresa. Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter atravessado a campanha eleitoral sem participar de qualquer debate com seus adversários, nem expor qualquer ideia digna do nome em matéria econômica, Paulo Guedes falou bastante ao longo da disputa. A agenda do candidato Bolsonaro era uma agenda ideológica e politicamente conservadora e economicamente liberal.

A dúvida, até aqui, sempre foi o quão liberal se mostraria a agenda do presidente Bolsonaro: se um liberalismo à moda Guedes em estado puro, ou se em sua versão mais moderada.

Depois da reforma da Previdência, a agenda apresentada pessoalmente por Bolsonaro, ao lado de Guedes e do ministro Onyx Lorenzoni, ao Congresso é uma oportunidade não só para modular o liberalismo econômico bolsonarista como para avaliar os limites e possibilidades de convivência entre um programa liberal econômico e uma estratégia política autoritária.

É um novo batismo de sangue de Paulo Guedes e de sua agenda. Afinal, o mesmo Congresso de que o ministro precisará nas votações das propostas de emenda à Constituições, dos projetos de lei e do pacote de estímulo ao emprego foi aquele tratado como hiena pelo presidente Jair Bolsonaro (congressistas, ministros do Supremo Tribunal Federal e opositores em geral).

O presidente e seus apoiadores mais bélicos criaram um ambiente politicamente devastador para a democracia.

Sua milícia digital achaca adversários como inimigos a serem extintos. O presidente ameaça cassar concessões de TV (Globo) e defende boicote de anunciantes a um jornal (Folha). Seu filho Eduardo sugeriu, na hipótese de uma suposta radicalização da esquerda, a edição de um novo AI-5, o mais tenebroso instrumento político adotado no país nas últimas décadas. Sua agenda em áreas relevantes, como educação, meio ambiente e relações exteriores, é mais do que conservadora (que não cito aqui como xingamento, como boa parte dos críticos do governo): é reacionária, promotora de retrocessos.

É preciso, portanto, muita separação na cabeça de um suposto liberal para ignorar as afrontas acima e concentrar-se na agenda pró-mercado.

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes: autoritarismo político e liberalismo econômico

A tacada de Guedes é incrivelmente ousada tanto por testar uma mudança profunda na visão econômica sobre o Estado brasileiro quanto por explorar os limites dessa convivência entre liberalismo econômico e autoritarismo político.

Não acredito nem um pouco num liberal pela metade, embora reconheça que, historicamente, esta é uma convivência plenamente possível. Aqui vale lembrar a feliz expressão do jovem filósofo francês Grégoire Chamayou, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica, na França: o liberalismo autoritário.

O liberalismo autoritário é aquele que combina, sem alguma contradição fundamental, liberalismo econômico com autoritarismo político. Nesse jogo, a democracia política não é o mais importante, e sim a economia liberal.

Se a célebre frase de Friedrich Hayek (“Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”) expressa essa visão, há um histórico entre alguns relevantes liberais brasileiros sobre tal convivência. Não são poucos os liberais (econômicos) brasileiros, como Paulo Guedes, muitos luminares do mercado financeiro, que acreditam ser possível separar o programa econômico que defendem da estratégia política autoritária.

Eugênio Gudin, pai dos economistas liberais brasileiros, foi um desses. Escrevi um livro sobre ele, em coautoria com o historiador Márcio Scalercio (Insight, 2012) e uma das características mais marcantes que aprendi nas pesquisas sobre o personagem foi justamente essa convivência.

Gudin era um elitista acima de tudo. Daqueles que rejeitavam a ampliação do direito ao voto por considerar que ainda estávamos em estágio de atraso – incapazes, portanto, de votar com qualidade e consciência. Também nos via como fadados ao atraso pelo determinismo geográfico (faltava-nos um clima temperado, como o argentino e o europeu) e pela herança ibérica (a eterna culpa dos portugueses).

Era um elitismo que se convertia num autoritarismo político.

Brilhantes como Gudin, a dupla liberal Octávio Bulhões e Roberto Campos assumiu a economia exatamente após o golpe de 1964. Era um outro Campos, não aquele que, até a década anterior, via no Estado o grande indutor da modernização e da infraestrutura no país (não à toa ajudou a criar o BNDES, na época sem o S).

Mas, enquanto Castello Branco iniciava o regime que duraria 21 anos, a dupla promovia uma das mais profundas mudanças na estrutura econômica do país.

Um ativismo reformista que, em pouco mais de quatro meses de debates e votações no Congresso, instituiu uma reforma bancária inédita, criou o Banco Central, instituiu o Sistema Financeiro de Habitação, reformou o Imposto de Renda, entre outras medidas, como alterações na Lei de greve e no Estatuto da Terra.

Alguns anos depois, Campos dedicaria loas à “disciplina social” e “coesão governamental” e celebraria uma definição adequada à sua posição: o autoritarismo consentido.

Paulo Guedes é um herdeiro dessa tradição. Vide o modo como minimiza o permanente ataque dos Bolsonaros à democracia, como ficou claro na sua exposição à Folha de S.Paulo, ou como tratou a diferença entre pobres e ricos no uso do dinheiro (“Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo”, disse ele, na mesma entrevista).

Um ministro da Fazenda vive de prova dos nove no seu diálogo (ou conflito) permanente com o Congresso, sobretudo em governos com bases frágeis (meu ex-chefe Joaquim Levy que o diga), e mais ainda com a população.

Guedes viverá novos testes, em meio à tentativa de recuperação da economia e do emprego, a uma inflação abaixo dos 4% (mas muito mais sintoma da estagnação do que mérito), um déficit nas contas públicas que insiste em permanecer alto e em privatizações ainda muito aquém do que ele desejava. Para completar, um grande risco de instabilidade internacional, sendo que o exterior é fundamental para uma retomada do crescimento brasileiro.

Mas não dá para negar sua coragem.

 

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Acordo UE-Mercosul: Bolsonaro erra, mas Macron não é o mocinho da história http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/10/09/acordo-ue-mercosul-bolsonaro-erra-mas-macron-nao-e-o-mocinho-da-historia/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/10/09/acordo-ue-mercosul-bolsonaro-erra-mas-macron-nao-e-o-mocinho-da-historia/#respond Wed, 09 Oct 2019 07:00:24 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=44 O anúncio da França de que se recusará a ratificar o acordo entre a União Europeia e o Mercosul é o típico exemplo dos riscos econômicos impostos por uma diplomacia presidencial baseada na agressividade, na provocação e no isolacionismo. A conta vai chegar, está chegando, e não apenas na forma de críticas públicas, vexame internacional e coisas do gênero. O efeito é prático e danoso para exportadores, para o agronegócio e para a reputação do país.

Mas não nos enganemos: franceses e irlandeses sempre foram os mais céticos em relação à iniciativa e estão se aproveitando dos problemas da política ambiental do governo Bolsonaro para negar o acordo. A tese da “Amazônia em chamas” é uma forma internacionalmente elegante, ambientalmente forte e politicamente convincente para Emmanuel Macron fazer agrados no plano doméstico.

“Não podemos assinar um tratado comercial com um país que não respeita a floresta amazônica, que não respeita o Tratado de Paris [do clima]”, disse a ministra francesa do Meio Ambiente, Elisabeth Borne. “A França não assinará o acordo do Mercosul nessas condições”.

Ótimo para Macron, mas excelente para os agricultores franceses, sempre nutridos à base de subsídios e claramente temerosos frente à concorrência brasileira e argentina. Em outras palavras: o pior erro de análise neste caso será enxergar a negaça da França com as cores da polarização. E não faltarão vibrações dos dois lados.

Do lado ambiental, enxergarão na recusa francesa a prova da culpa da (reconhecida) incapacidade do governo Bolsonaro de resolver o problema das queimadas da Amazônia e de uma política ambiental questionável – naquela região, a ação governamental age em nome especialmente do lobby de mineradoras.

Do lado do governo, ao seu estilo belicoso e desrespeitoso, possivelmente virão reações ao gesto do governo francês. Mas, na prática, para muitos observadores da política externa e comercial de Bolsonaro, como a economista Monica de Bolle, o governo não se importa muito com o acordo – o que torna um pouco inexplicável a euforia que se seguiu ao anúncio, no fim de julho. Muito barulho por quase nada?

É grande a tentação de adotar o estilo “ou pau, ou pedra, ou o fim do caminho”, próprio das reações polarizadas do momento, mas neste caso há matizes relevantes que precisam ser levados em conta.

Primeiro: a lembrança de que os agricultores franceses se opõem ao pacto UE-Mercosul. O que Macron fez em agosto, na sua providencial reação ao tema da Amazônia, foi unir agricultores e ambientalistas – estes, sabemos, detestam o presidente brasileiro. França, Polônia e Irlanda são tradicionalmente protecionistas em agricultura e temerosos da concorrência do Mercosul.

Segundo: é preciso olhar não só para a França, mas também para os alemães, um dos grandes defensores do acordo mas que tem hoje o movimento ambientalista mais influente do mundo. Tanto associações da indústria alemã, de olho no grande mercado do Mercosul, quanto o Ministério das Relações Exteriores alemão têm trabalhado para evitar o descarrilamento do acordo. A diplomacia alemã enxerga na América Latina um parceiro importante na defesa do multilateralismo, como um sinal de repúdio à política protecionista de Donald Trump. Mas a parcela ambientalista do governo alemão resiste.

Do que deriva o terceiro importante matiz a ser considerado: a retórica bolsonarista agrava, estimula, alimenta a reação dos contrários ao acordo. Retórica radical, na diplomacia, só inviabiliza ratificação de qualquer acordo, simples ou complexo. “Bolsonaro realmente não nos ajuda. Não o entendo”, chegou a dizer, não faz muito tempo, um diplomata alemão ao jornal “El País”. Não foi à toa que os próprios líderes do agronegócio brasileiro começaram a pressionar o governo para moderar seu discurso e adotar uma postura ambiental mais pragmática.

Estava escrito, em alertas sugeridos por gente respeitável, como o embaixador Rubens Ricupero: a atitude final de países como França e Alemanha dependeria do comportamento das autoridades brasileiras nos meses seguintes ao anúncio do acordo. O risco agora é perder o maior acordo assinado pelo Brasil em quatro décadas – depois do pacto que estabeleceu o Mercosul, o Brasil tinha parcerias apenas com economias menores, como Israel e Egito, ou alguns países da América do Sul, como Chile, Peru e Colômbia. Nada de EUA, China, União Europeia e Japão.

Como o próprio Ricupero lembrou, em poucos meses de vida, o governo criminalizou os fiscais do Ibama e do Instituto Chico Mendes, desmantelou as instituições de controle do desmatamento e encorajou a ação criminosa dos desmatadores. Esse tipo de comportamento significa oferecer munição aos negociadores estrangeiros, dando-lhes pretexto para frear qualquer acordo.

Como seria pouco provável uma mudança fundamental na política ambiental do governo, restaria torcer por duas coisas: um processo rápido de ratificação do acordo e menos bravata de Bolsonaro. Vale o óbvio: o silêncio e a moderação sempre foram a alma do negócio em matéria diplomática.

Nenhuma coisa nem outra haverá de ocorrer, então os prognósticos podem ser bastante pessimistas a partir daqui: é provável que o acordo seja suspenso devido à quebra dos compromissos brasileiros no plano ambiental e, se as previsões se confirmarem, o Brasil terá uma crise inédita e sem precedentes no Mercosul.  Mas duvido que o presidente Jair Bolsonaro esteja preocupado com isso.

A esperteza política de Macron no caso não exime Bolsonaro de sua responsabilidade. Ele precisa ter consciência de que discurso e prática presidencial têm consequências econômicas concretas. Não esqueçamos dos anúncios de boicote a produtos brasileiros, por países como a Áustria, e por empresas europeias. Ou que, pouco antes da ida do presidente à ONU, 230 fundos de investimentos, que geram ativos na casa de US$ 16,2 trilhões, externaram preocupação com a Amazônia.

Quem os conhece por dentro sabe: uma manifestação assim surge não espontaneamente, ela nasce da pressão de investidores sensíveis às causas ambientais.

 

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Evidências científicas sobre o clima que Bolsonaro preferiu ignorar na ONU http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/09/25/evidencias-cientificas-sobre-o-clima-que-bolsonaro-preferiu-ignorar-na-onu/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/09/25/evidencias-cientificas-sobre-o-clima-que-bolsonaro-preferiu-ignorar-na-onu/#respond Wed, 25 Sep 2019 07:00:45 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=32 “Isso não é sobre nós, não é sobre ativismo juvenil”, avisou a já célebre estudante sueca Greta Thumberg, 16, em seu famoso discurso no Congresso dos EUA em defesa do meio ambiente, antes mesmo de sua contundente fala na abertura da Cúpula do Clima, na ONU, no sábado. “Não queremos ser ouvidos. Queremos que a ciência seja ouvida.”

Sim, a ciência. A jovem ativista poderia estar se dirigindo ao presidente Jair Bolsonaro, mas falou assim para os congressistas norte-americanos, convicta de que a mobilização atual em favor da preservação ambiental espera que as autoridades ouçam menos as palavras de ordem e mais os dados, as evidências, o conhecimento científico.

Em seu agressivo discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro preferiu, mais uma vez, ignorar a ciência ao atirar para todos os lados –o ambientalismo, os governos da França, Venezuela e Cuba, e até mesmo a ONU. Ele ignora, mas precisamos repetir a ciência incansavelmente (veja a íntegra do discurso aqui).

Evidências científicas

1. Relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) alerta: a mudança do clima está se acelerando, e a concentração recorde de gases de efeito estufa na atmosfera mostra que o período 2015-2019 deve fechar como os cinco anos mais quentes do registro histórico da entidade.

A temperatura global já subiu 1,1ºC desde o período pré-industrial, mas, considerando somente esses últimos cinco anos, a taxa de crescimento da concentração de gás carbônico (CO₂) na atmosfera é cerca de 20% mais alta que nos cinco anos anteriores, devendo chegar a cerca de 410 ppm (partes por milhão) até o final do ano, segundo os  dados preliminares.

São várias as consequências apontadas no relatório: declínio abrupto das camadas de gelo da Antártida e da Groenlândia, intensas tempestades tropicais, como as que ocorreram este ano nas Bahamas e em Moçambique, levando a catástrofes humanitárias e econômicas, aumento médio global do nível do mar em torno de 5mm por ano, em comparação com 4mm por ano no período entre 2007 e 2016.

Mais de 90% dos desastres naturais que ocorreram nos últimos anos estiveram relacionados ao clima, incluindo tempestades e inundações, ondas de calor e secas, incêndios florestais e perda de colheita (relatório, em inglês, disponível aqui).

2. Unicef, a agência da ONU para a infância, acrescenta: se  continuar o ritmo atual de degradação, na próxima década a mudança climática deve afetar 175 milhões de crianças por ano. Crianças e mulheres são especialmente vulneráveis diante das adversidades climáticas.

A população feminina, sistematicamente discriminada em grande parte do mundo, costuma não ter acesso igual aos homens a recursos como terra, água, sementes, fertilizantes ou créditos para a produção. Em outras palavras, mulheres e crianças estão física, fisiológica e epidemiologicamente mais expostas ao impacto, segundo o Unicef, menos capazes, portanto, de suportar secas, inundações e condições extremas.

Isso significa reduzir prognósticos de combate à mortalidade infantil e outros Objetivos do Desenvolvimento Sustentável devido à desigualdade e à crise climática. A pobreza extrema não será erradicada.

3. O Banco Mundial oferece estudos ainda mais desanimadores: 100 milhões de pessoas podem cair em situação de pobreza até 2030 por causa dos impactos climáticos. E, até 2050, em três regiões (África Subsaariana, Sul da Ásia e América Latina) que representam 55% da população do mundo em desenvolvimento, a mudança climática poderia obrigar mais de 143 milhões de pessoas a se deslocarem dentro de seus países.

4. O Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês), principal fonte de informação sobre o tema, registrou há dois anos cerca de 30 milhões de novos deslocamentos internos no mundo –1/3 formado por pessoas obrigadas a se deslocar por conflitos e violência, 2/3 por desastres. Foram quase 19 milhões de novos deslocamentos devido a desastres naturais.

Embora a própria instituição reconheça ser impossível estabelecer uma relação direta entre os efeitos da mudança climática e o deslocamento forçado (há muitos fatores que levam uma pessoa à decisão de abandonar seu lar), pelo menos um motivo é claro e inevitável: a elevação no nível do mar, que obriga comunidades litorâneas a abandonarem suas casas.

5. Dois outros estudos a acrescentar nesta pequena pedagogia pró-conhecimento que ilusoriamente alguns esperam levar ao presidente Bolsonaro. O primeiro, publicado na revista Nature, destaca que, durante a “pequena era glacial” (de 1300 a 1850), apesar de ter sido registrado um frio extremo na Europa e nos EUA durante vários séculos, não ocorreu o mesmo em todo o planeta.

“Quando olhamos para o passado, encontramos fenômenos regionais, mas nenhum em todo o mundo”, explicou Nathan Steiger da Universidade de Columbia em Nova York, um dos autores do estudo. “Por outro lado, atualmente, o aquecimento é global. Agora, 98% do planeta sofreu um aquecimento após a revolução industrial.”

6. Um segundo artigo foi publicado no Nature Geoscience e examina a média das variações de temperatura em períodos curtos, de diversas décadas. As conclusões são claras: em nenhum momento desde o início da era cristã, as temperaturas subiram tão rapidamente e de maneira tão regular como no final do século 20. O resultado revela “o caráter extraordinário da mudança climática atual”, segundo palavras de Raphael Neukom, da Universidade de Berna, na Suíça, coautor do estudo.

7. Como afirmou a revista The Economist, de um ano para o outro, você não consegue sentir a diferença. Mas, à medida que as décadas se acumulam, a história se torna clara, razão pela qual a revista expôs as faixas em sua última capa para representar a temperatura média do mundo em todos os anos desde meados do século 19, de acordo com os dados científicos disponíveis. Se observado no todo, a mudança cumulativa dá um salto.

Capa da revista “The Economist” mostra o aumento da temperatura no mundo

 

Não tem a ver com ideologia nem partido

Todas essas evidências revelam que o problema vai muito além do desgastado (e falso) dilema que opõe desenvolvimento e preservação do meio ambiente. E muito, muito mais além da cegueira desproposital da extrema-direita no mundo, da qual fazem parte Donald Trump e Jair Bolsonaro.

Seria ilusão esperar do presidente brasileiro alguma mudança em decorrência das críticas que recebeu antes de embarcar para Nova York: sua crença é sua cegueira, e ela se baseia na ideia de que o clima é um tema meramente ideológico, partidário, coisa de gente estúpida que invade escolas, universidades, imprensa e família.

Como o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o chanceler Ernesto Araújo, Bolsonaro é hostil à ciência climática. Mais do que isso, é contra a tese do aquecimento global e tende a reduzir drasticamente a importância do papel da ação humana na degradação ecológica do planeta.

Para Araújo, não há ciência envolvida, ao contrário. Tudo se resume a uma “trama marxista”. Para Bolsonaro, muita coisa ligada ao meio ambiente e, em especial, à Amazônia, se resume a uma questão de conspiração da esquerda (da qual até a ONU faria parte) e soberania nacional.

Sugestões extremas –e perigosas

Nesse debate, concordo com Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé. Segundo ele, o debate sobre a Amazônia é essencialmente geopolítico: de um lado, políticos e acadêmicos estão sugerindo uma intervenção para “salvar” a floresta tropical (o francês Emmanuel Macron chegou ao extremo de propor um debate sobre a internacionalização da Amazônia); de outro lado, líderes brasileiros, Bolsonaro em particular, usam esses argumentos para reforçar sua base doméstica, exigindo a proteção da soberania brasileira.

“Ambos os argumentos são potencialmente perigosos”, afirma Robert Muggah. Ele e a pesquisadora Adriana Abdenur, também do Igarapé, publicaram há poucos dias, no jornal Le Monde Diplomatique, importante artigo no qual sustentam que é preciso repensar o que “soberania nacional” significa no contexto de bens públicos globais, como a Amazônia e ameaças de ecocídio. Eles defendem uma “soberania responsável”, abordagem usada nas negociações internacionais, como o Acordo de Paris ou o Protocolo de Quioto.

São estratégias já existentes para proteger bens públicos como florestas nas Américas, na África e na Ásia. Uma visão que escapa da paranoia presente tanto na cabeça de ativistas internacionais quanto em políticos populistas da extrema-direita, como Bolsonaro. Para o presidente e seus ministros bolsonaristas, números e, sobretudo, dados científicos, pouco ou nada importam.

O chanceler chegou a usar o exemplo do frio que pegou na Itália para desmerecer a tese do aquecimento global; se estava frio, como o mundo está aquecido? –eis a lógica do ministro, ignorando a diferença entre clima e tempo meteorológico.

Disparates do gênero, no entanto, só reforçam a necessidade de continuar lutando, esclarecendo, informando. Com mais ciência e menos palavras vazias, para usar a expressão da jovem Greta Thumberg.

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Mudança no programa Bolsa Família é um risco para mais pobres e miseráveis http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/09/18/mudanca-no-programa-bolsa-familia-e-um-risco-para-mais-pobres-e-miseraveis/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/09/18/mudanca-no-programa-bolsa-familia-e-um-risco-para-mais-pobres-e-miseraveis/#respond Wed, 18 Sep 2019 07:00:29 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=22 As últimas semanas mostraram que o programa Bolsa Família, na forma como o conhecemos, pode estar com os dias contados. Mais do que ter o Bolsa Família como alvo, o governo do presidente Jair Bolsonaro prepara uma revisão de programas que integram a rede de proteção social do país –uma reforma que, embora seja uma promessa de campanha, ainda envolve muito mais pontos de sombra do que de luz.

Apesar da previsível grita dos defensores do Bolsa Família, diante do risco iminente de cortes, o diagnóstico parece correto e vem de Sergei Soares, economista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Na sua avaliação, hoje há uma colcha de retalhos, com sobreposições de programas e benefícios, sem articulação. A unificação tenta eliminar as sobreposições e comprometer-se com o equilíbrio fiscal das contas do governo.

Já durante a campanha presidencial, estimulado por Paulo Guedes, então assessor econômico de Bolsonaro, Soares avisava: é preciso rever diversos benefícios sociais hoje pagos pela União e unificá-los. A equipe do candidato sugeria tanto a ampliação do programa, criando um “super Bolsa Família”, quanto acabar com o abono salarial.

Em agosto, o economista publicou um estudo, que assina com Letícia Bartholo e Rafael Guerreiro Osório, batizado “Uma proposta para a unificação dos benefícios sociais de crianças, jovens e adultos pobres e vulneráveis”. Agora sabe-se que o estudo é uma encomenda do governo para reformar a “assistência complementar” (liberais não gostam muito da palavra “social”).

A proposta em discussão no governo é fundir quatro programas num único projeto: o Bolsa Família, o Salário-Família, a dedução por dependente para crianças no Imposto de Renda Pessoa Física e o abono salarial. Os quatro programas totalizam hoje R$ 52 bilhões.

O governo garante que não haverá corte de verbas, defendendo a premissa de que todos os que estão no Bolsa Família ou ficam melhor, ou ficam igual, segundo expressão usada pelo secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida.

Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e voz ativa na concepção do programa Bolsa Família no início do governo Lula, acha o contrário, e enxerga alto risco na ideia. Segundo ela, a unificação dos programas deve promover o fim de políticas assistenciais e o principal propósito é cortar gastos sociais.

A unificação não é ruim, ao contrário. O próprio Bolsa Família nasceu de uma ideia similar, ao juntar, em 2003, o Bolsa Escola Federal, o Bolsa Alimentação, o Cartão Alimentação e o Auxílio Gás – quatro programas herdados do governo Fernando Henrique Cardoso. Ao lado da criação do Cadastro Único, buscava-se evitar sobreposições e duplicidades no recebimento de benefícios e, portanto, aumentar a focalização dos programas.

É bom lembrar que, na época, os tucanos acusaram o então presidente Lula de tentar reinventar a roda para apagar os feitos de FHC. E que o próprio PT atacou ferozmente o programa, criticando a focalização prevista na base dos programas de transferência de renda defendidos pelo Banco Mundial –a esquerda petista apostava na universalização como premissa de uma política social democrática e eficaz.

Provas adicionais de quantas voltas o mundo dá: na proposta de unificação de Sergei Soares, prevê-se um benefício universal, a ser pago com R$ 45 por criança e jovem com menos de 18 anos de idade, independentemente da renda familiar. Segundo o estudo do Ipea, a universalidade “evita estigmas, constrói uma coalisão mais ampla de forças em sua defesa e promove a percepção simbólica de que as crianças e adolescentes, independentemente de suas características econômicas, sociais ou individuais, são valorizados pelo Estado”.

Em bom português: a meta é atrair simpatia da população.

O cenário mais perigoso aqui é a diluição e, até mesmo, a redução dos recursos direcionados aos segmentos que mais precisam do Bolsa Família. Embora o governo negue, o próprio estudo do Ipea admite perdedores.

“Muitas famílias pobres que hoje recebem o BSP [Benefício da Superação da Extrema Pobreza] verão seus benefícios caírem. São famílias que vivem em contextos de muita escassez e para quem quedas no benefício podem ser drásticas”, explicam os pesquisadores. As perdas podem chegar a 8,8 milhões ou 9,4 milhões de famílias, dependendo do modelo adotado pelo governo.

Dá para fazer um estrago na vida de quase 26 milhões de pessoas.

Reformas desse tipo, e da maneira como o governo vem conduzindo, caem no mesmo tipo de problema de risco de imagem quando nascem no meio de um problema fiscal grave e são concebidas por uma equipe econômica liberal, disposta a qualquer sacrifício em nome do equilíbrio fiscal. Nos dois casos, a convicção natural de quem recebe a notícia é de que a motivação principal da reforma é menos a eficácia da política social e mais a economia nas contas do governo.

A ex-presidente Dilma Rousseff entende bem desse problema. Assim que iniciou o seu segundo mandato, coube a seu novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, anunciar medidas impopulares para reequilibrar as contas públicas, alterando regras na concessão do seguro-desemprego, pensão por morte, abono salarial e seguro-defeso (pago a pescadores no período de proibição da pesca).

Dilma e Levy passariam meses tendo de se explicar que buscavam ali correções nas políticas de seguridade social, para evitar distorções e excessos, e não estavam tirando direitos de trabalhadores. E o ministro da Fazenda entraria definitivamente no índex da esquerda e, em particular, do PT.

Agora, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes podem ter de enfrentar a mesma coisa. Sobretudo quando o país tem, em sua memória recente, a proposta inicial da reforma da Previdência, quando a equipe de Paulo Guedes propôs a tunga do Benefício de Prestação Continuada, que dá um salário mínimo aos miseráveis que têm mais de 65 anos de idade.

Era uma ideia engenhosa: dava R$ 400 ao miserável a partir dos 60 anos –um alívio para quem recebe, no máximo, R$ 371 pelo Bolsa Família– mas, com a outra mão, pretendia tomar pelo menos R$ 598 mensais dos miseráveis com mais de 65 anos. Estes só teriam o direito ao salário mínimo se, e quando, chegassem aos 70.

Três coisas, portanto, Bolsonaro precisará provar:

  1. Vai mudar o Bolsa Família para remover a marca petista e iniciar uma nova, ou apenas aperfeiçoá-lo?
  1. A unificação de programas será, de fato, para reduzir fragmentação e sobreposições de iniciativas ou uma forma marota de reduzir gastos escondendo quedas explícitas?
  1. Qual conta valerá para aqueles que mais precisam (os pobres e miseráveis que precisam de mais renda, e não menos)?

Na primeira questão, não é demais lembrar que, há poucas semanas, um integrante da equipe econômica defendeu a mudança do Bolsa Família para que o governo possa construir uma “marca social”.

Na segunda questão, convém ressaltar: um dos méritos do Bolsa Família é, justamente, o seu foco, garantindo transferência de renda para as famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, combatendo a fome, superando suas condições de privação e promovendo o acesso à rede de serviços públicos –em especial os de saúde, educação, segurança alimentar e assistência social.

Para a terceira questão, recorro a outro estudo do Ipea, também divulgado em agosto, e também assinado por Sergei Soares (neste caso, com Pedro H. G. Ferreira de Souza, Rafael Guerreiro Osorio e Luis Henrique Paiva), cujo título é “Os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: Um balanço dos primeiros 15 anos”. Na conclusão: o programa foi o principal responsável por reduzir em 15% a pobreza e em 25% a extrema pobreza. Efeito de um salto no número de beneficiários –de 6 milhões de famílias, em 2004, para 13,3 milhões de famílias, em 2017.

Segundo os pesquisadores, os desafios permanecem, pois 64% dos beneficiados pelo programa continuam em situação de extrema pobreza. Isso pode ser explicado pelo valor médio transferido mensalmente para cada família –cerca de R$ 180 em 2017. “O valor modesto”, escreveram os pesquisadores, “impede que o programa seja ainda mais eficaz no combate à pobreza no país”.

Eis o ponto que a reforma em gestação no governo agora não alcança. Sobretudo porque a unificação de 2019 é bem diferente daquela de 2003: juntam-se focos distintos, pois o Bolsa Família se destina às famílias pobres e extremamente pobres, enquanto a redução de dependentes do Imposto de Renda tem como alvo setores médios e altos da sociedade, que são tributados nas rendas que recebem. Além disso, Salário-família e o abono salarial destinam-se aos trabalhadores formais, com carteira assinada.

Até que as dúvidas sejam removidas e eventuais mudanças, plenamente debatidas, convém ficar de olho. Na dúvida, aposte-se na ameaça ao Bolsa Família e no risco de os mais pobres pagarem a conta do reequilíbrio fiscal.

A íntegra do estudo do Ipea pode ser lida aqui.

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Paulo Guedes se adapta a Bolsonaro e cria a economia política da borduna http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/09/11/paulo-guedes-se-adapta-a-bolsonaro-e-cria-a-economia-politica-da-borduna/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/09/11/paulo-guedes-se-adapta-a-bolsonaro-e-cria-a-economia-politica-da-borduna/#respond Wed, 11 Sep 2019 07:00:21 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=11 O ministro da Economia, Paulo Guedes, vem conseguindo algo novo no Brasil: ao seguir e ratificar a estética e a ética do seu chefe, tem ajudado a instituir aqui a política econômica da borduna. É a economia política da radicalização, do desvario e da canelada que ameaça produzir sérias consequências práticas.

Para muita gente, sobretudo integrantes da elite econômica, Guedes chegou ao governo como fiador do presidente Jair Bolsonaro. O ministro seria um preço bom a se pagar pelas reformas e por uma política econômica, enfim, liberal, que só Guedes seria capaz de efetivar no país.

Segundo esse tipo de visão, as ofensas retóricas já antecipadas na campanha, a demonstração de intolerância e desrespeito frente a adversários ou ideias contrárias, o menosprezo pelas instituições e o pouco ânimo para valores da democracia, tudo isso seria um mal menor se o liberalismo de Guedes desse conta do recado no mundo inconsequente de Jair Bolsonaro.

Guedes não seria o primeiro a ter a condição de primeiro-ministro respeitável capaz de chancelar e garantir confiança a um chefe não tão respeitável assim ou imerso numa crise de circunstância. Desde que o Ministério da Fazenda foi criado em 1808, com a chegada de dom João 6º ao Brasil colonial, muitos dos mais de 150 ministros titulares e interinos no ministério funcionaram como fiadores de líderes políticos.

Característica não restrita ao Brasil. Ex-vice-presidente do Banco Central americano e membro do Conselho Econômico do presidente Bill Clinton, o professor Alan Blinder escreveu uma vez que os políticos usam os economistas como os bêbados usam o poste: lhes serviriam mais para apoiar do que para iluminar.

Ao contrário de boa parte de seus colegas economistas, no entanto, Blinder defende a política e a democracia e ressalta que não apenas os políticos devem aprender as consequências econômicas de suas promessas: cabe aos economistas aprender o timing e os limites daqueles que têm mandato eletivo e, assim, poderem influenciar melhor a agenda pública.

Esse equilíbrio entre presidente e ministro é essencial para um país –mas equilíbrio, mesmo dinâmico, não significa o que está ocorrendo com Paulo Guedes. Se os chamados “mercados” tinham uma expectativa de que ele aparasse as arestas do governo Bolsonaro e trouxesse mais civilidade ao presidente e seu mandato, em alguns momentos o ministro derrapou e aconteceu exatamente o contrário.

No histórico de fiadores em equilíbrio, basta lembrar o caso bem-sucedido de Fernando Henrique Cardoso no governo Itamar Franco, ou Henrique Meirelles na gestão-tampão de Michel Temer, para citar exemplos mais recentes. Alguns tiveram a diplomacia como formação e prática, como Oswaldo Aranha nos anos 1930 e 1950, ou Santiago Dantas, na década de 1960. Muitos adotaram a premissa da previsibilidade da fala e dos atos, como Pedro Malan nos oito anos de mandato de FHC.

O fato é que, hoje, Guedes mais parece estar se adaptando às ideias e ao estilo do presidente. E é isso que pode ter efeitos econômicos concretos.

A retórica agressiva do presidente, a longa depressão econômica, a demora histórica da recuperação do PIB, da renda e do emprego, a desestabilização política e institucional que Bolsonaro produz com seu comportamento conflituoso e sua concentração em temas miúdos têm começado a acender a luz amarela da desconfiança em quem, até pouco tempo, fazia profissão de fé nas expectativas geradas por Paulo Guedes.

O presidente exibe seus problemas de incontinência no plano externo –já deu chutes e pontapés retóricos sobre Chile, Noruega, Alemanha, França– e, igualmente, no plano doméstico. Volta-se cada vez mais para a sua base mais extremada e promete radicalizar ainda mais à direita.

Engana-se quem acha que gestos assim se resumem à política. Não há desenvolvimento econômico sem investigação científica, sem diversidade cultural, sem equilíbrio na convivência com o meio ambiente. Não há desenvolvimento econômico com a crença de que liberdades se restringem à esfera econômica. Não há desenvolvimento econômico com isolacionismo diplomático e/ou alinhamentos incondicionais, nem com tensionamentos institucionais.

Tudo isso ajuda a criar barreiras às decisões de investimento nacionais e estrangeiros, travar acordos comerciais com outros países e blocos, e criar desestímulos sérios a negócios.

É verdade que nem sempre autoritarismo mostra-se ruim para a economia –China e Singapura são histórias de sucesso econômico. Mas quem discorda ou ignora o impacto de governos autoritários ou capazes de promover retrocessos democráticos sobre a economia de seus países deveria ler o último relatório anual da Freedom House, publicado no início de 2019, com base nos indicadores do ano passado. Segundo o relatório, 71 entre 195 países do mundo viram suas instituições democráticas erodirem nos últimos anos. A pesquisa mostrou que, quando instituições se deterioram, não é ruim apenas para a democracia –também prejudica economicamente esses países.

Guedes e Bolsonaro perderão apoio dos mesmos mercados que os apoiaram desde 2018 para cá? Difícil dizer. Mas, quando os ganhos começam a ser prejudicados, o risco aumenta, e é este o risco já analisado em certos setores que até aqui apoiam o ministro e o presidente.

Destravar o crescimento se tornará elemento-chave para ambos reduzirem esse risco. O problema, neste ponto, é que Guedes e sua equipe concentram seus projetos, planos e promessas num programa liberal que não responde às urgências atuais da nossa economia e se mostra incapaz de tirar o país da estagnação que nos aprisiona no curto prazo.

Com o padrão de Bolsonaro e a conivência do seu ministro da Economia, a consequência pode vir em forma de mais canelada, a borduna que o presidente ameaçou levantar.

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Blog do Rodrigo de Almeida estreia no UOL http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/08/30/blog-do-rodrigo-de-almeida-estreia-no-uol/ http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/2019/08/30/blog-do-rodrigo-de-almeida-estreia-no-uol/#respond Fri, 30 Aug 2019 14:22:56 +0000 http://rodrigoalmeida.blogosfera.uol.com.br/?p=7 Reflexões e análises sobre questões econômicas, sem economês, sob a ótica da economia política e seus impactos sobre a sociedade, a democracia, o capitalismo e as instituições.

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