Evidências científicas sobre o clima que Bolsonaro preferiu ignorar na ONU
Rodrigo de Almeida
25/09/2019 04h00
"Isso não é sobre nós, não é sobre ativismo juvenil", avisou a já célebre estudante sueca Greta Thumberg, 16, em seu famoso discurso no Congresso dos EUA em defesa do meio ambiente, antes mesmo de sua contundente fala na abertura da Cúpula do Clima, na ONU, no sábado. "Não queremos ser ouvidos. Queremos que a ciência seja ouvida."
Sim, a ciência. A jovem ativista poderia estar se dirigindo ao presidente Jair Bolsonaro, mas falou assim para os congressistas norte-americanos, convicta de que a mobilização atual em favor da preservação ambiental espera que as autoridades ouçam menos as palavras de ordem e mais os dados, as evidências, o conhecimento científico.
Em seu agressivo discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro preferiu, mais uma vez, ignorar a ciência ao atirar para todos os lados –o ambientalismo, os governos da França, Venezuela e Cuba, e até mesmo a ONU. Ele ignora, mas precisamos repetir a ciência incansavelmente (veja a íntegra do discurso aqui).
Evidências científicas
1. Relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) alerta: a mudança do clima está se acelerando, e a concentração recorde de gases de efeito estufa na atmosfera mostra que o período 2015-2019 deve fechar como os cinco anos mais quentes do registro histórico da entidade.
A temperatura global já subiu 1,1ºC desde o período pré-industrial, mas, considerando somente esses últimos cinco anos, a taxa de crescimento da concentração de gás carbônico (CO₂) na atmosfera é cerca de 20% mais alta que nos cinco anos anteriores, devendo chegar a cerca de 410 ppm (partes por milhão) até o final do ano, segundo os dados preliminares.
São várias as consequências apontadas no relatório: declínio abrupto das camadas de gelo da Antártida e da Groenlândia, intensas tempestades tropicais, como as que ocorreram este ano nas Bahamas e em Moçambique, levando a catástrofes humanitárias e econômicas, aumento médio global do nível do mar em torno de 5mm por ano, em comparação com 4mm por ano no período entre 2007 e 2016.
Mais de 90% dos desastres naturais que ocorreram nos últimos anos estiveram relacionados ao clima, incluindo tempestades e inundações, ondas de calor e secas, incêndios florestais e perda de colheita (relatório, em inglês, disponível aqui).
2. Unicef, a agência da ONU para a infância, acrescenta: se continuar o ritmo atual de degradação, na próxima década a mudança climática deve afetar 175 milhões de crianças por ano. Crianças e mulheres são especialmente vulneráveis diante das adversidades climáticas.
A população feminina, sistematicamente discriminada em grande parte do mundo, costuma não ter acesso igual aos homens a recursos como terra, água, sementes, fertilizantes ou créditos para a produção. Em outras palavras, mulheres e crianças estão física, fisiológica e epidemiologicamente mais expostas ao impacto, segundo o Unicef, menos capazes, portanto, de suportar secas, inundações e condições extremas.
Isso significa reduzir prognósticos de combate à mortalidade infantil e outros Objetivos do Desenvolvimento Sustentável devido à desigualdade e à crise climática. A pobreza extrema não será erradicada.
3. O Banco Mundial oferece estudos ainda mais desanimadores: 100 milhões de pessoas podem cair em situação de pobreza até 2030 por causa dos impactos climáticos. E, até 2050, em três regiões (África Subsaariana, Sul da Ásia e América Latina) que representam 55% da população do mundo em desenvolvimento, a mudança climática poderia obrigar mais de 143 milhões de pessoas a se deslocarem dentro de seus países.
4. O Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês), principal fonte de informação sobre o tema, registrou há dois anos cerca de 30 milhões de novos deslocamentos internos no mundo –1/3 formado por pessoas obrigadas a se deslocar por conflitos e violência, 2/3 por desastres. Foram quase 19 milhões de novos deslocamentos devido a desastres naturais.
Embora a própria instituição reconheça ser impossível estabelecer uma relação direta entre os efeitos da mudança climática e o deslocamento forçado (há muitos fatores que levam uma pessoa à decisão de abandonar seu lar), pelo menos um motivo é claro e inevitável: a elevação no nível do mar, que obriga comunidades litorâneas a abandonarem suas casas.
5. Dois outros estudos a acrescentar nesta pequena pedagogia pró-conhecimento que ilusoriamente alguns esperam levar ao presidente Bolsonaro. O primeiro, publicado na revista Nature, destaca que, durante a "pequena era glacial" (de 1300 a 1850), apesar de ter sido registrado um frio extremo na Europa e nos EUA durante vários séculos, não ocorreu o mesmo em todo o planeta.
"Quando olhamos para o passado, encontramos fenômenos regionais, mas nenhum em todo o mundo", explicou Nathan Steiger da Universidade de Columbia em Nova York, um dos autores do estudo. "Por outro lado, atualmente, o aquecimento é global. Agora, 98% do planeta sofreu um aquecimento após a revolução industrial."
6. Um segundo artigo foi publicado no Nature Geoscience e examina a média das variações de temperatura em períodos curtos, de diversas décadas. As conclusões são claras: em nenhum momento desde o início da era cristã, as temperaturas subiram tão rapidamente e de maneira tão regular como no final do século 20. O resultado revela "o caráter extraordinário da mudança climática atual", segundo palavras de Raphael Neukom, da Universidade de Berna, na Suíça, coautor do estudo.
7. Como afirmou a revista The Economist, de um ano para o outro, você não consegue sentir a diferença. Mas, à medida que as décadas se acumulam, a história se torna clara, razão pela qual a revista expôs as faixas em sua última capa para representar a temperatura média do mundo em todos os anos desde meados do século 19, de acordo com os dados científicos disponíveis. Se observado no todo, a mudança cumulativa dá um salto.
Capa da revista "The Economist" mostra o aumento da temperatura no mundo
Não tem a ver com ideologia nem partido
Todas essas evidências revelam que o problema vai muito além do desgastado (e falso) dilema que opõe desenvolvimento e preservação do meio ambiente. E muito, muito mais além da cegueira desproposital da extrema-direita no mundo, da qual fazem parte Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Seria ilusão esperar do presidente brasileiro alguma mudança em decorrência das críticas que recebeu antes de embarcar para Nova York: sua crença é sua cegueira, e ela se baseia na ideia de que o clima é um tema meramente ideológico, partidário, coisa de gente estúpida que invade escolas, universidades, imprensa e família.
Como o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o chanceler Ernesto Araújo, Bolsonaro é hostil à ciência climática. Mais do que isso, é contra a tese do aquecimento global e tende a reduzir drasticamente a importância do papel da ação humana na degradação ecológica do planeta.
Para Araújo, não há ciência envolvida, ao contrário. Tudo se resume a uma "trama marxista". Para Bolsonaro, muita coisa ligada ao meio ambiente e, em especial, à Amazônia, se resume a uma questão de conspiração da esquerda (da qual até a ONU faria parte) e soberania nacional.
Sugestões extremas –e perigosas
Nesse debate, concordo com Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé. Segundo ele, o debate sobre a Amazônia é essencialmente geopolítico: de um lado, políticos e acadêmicos estão sugerindo uma intervenção para "salvar" a floresta tropical (o francês Emmanuel Macron chegou ao extremo de propor um debate sobre a internacionalização da Amazônia); de outro lado, líderes brasileiros, Bolsonaro em particular, usam esses argumentos para reforçar sua base doméstica, exigindo a proteção da soberania brasileira.
"Ambos os argumentos são potencialmente perigosos", afirma Robert Muggah. Ele e a pesquisadora Adriana Abdenur, também do Igarapé, publicaram há poucos dias, no jornal Le Monde Diplomatique, importante artigo no qual sustentam que é preciso repensar o que "soberania nacional" significa no contexto de bens públicos globais, como a Amazônia e ameaças de ecocídio. Eles defendem uma "soberania responsável", abordagem usada nas negociações internacionais, como o Acordo de Paris ou o Protocolo de Quioto.
São estratégias já existentes para proteger bens públicos como florestas nas Américas, na África e na Ásia. Uma visão que escapa da paranoia presente tanto na cabeça de ativistas internacionais quanto em políticos populistas da extrema-direita, como Bolsonaro. Para o presidente e seus ministros bolsonaristas, números e, sobretudo, dados científicos, pouco ou nada importam.
O chanceler chegou a usar o exemplo do frio que pegou na Itália para desmerecer a tese do aquecimento global; se estava frio, como o mundo está aquecido? –eis a lógica do ministro, ignorando a diferença entre clima e tempo meteorológico.
Disparates do gênero, no entanto, só reforçam a necessidade de continuar lutando, esclarecendo, informando. Com mais ciência e menos palavras vazias, para usar a expressão da jovem Greta Thumberg.
Sobre o Autor
Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político, com doutorado em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Uerj e passagem como visiting scholar na The New School for Social Research, com estudos sobre as relações entre Estado, empresariado e variedades de capitalismo. Foi diretor de Jornalismo do iG, editor executivo do Jornal do Brasil, editor da revista Insight-Inteligência e diretor executivo e curador da Casa do Saber Rio, entre outros cargos. Trabalhou como assessor de comunicação do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy (2015), e como secretário de Imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff (2015-2016). Autor, entre outros livros, de À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff (LeYa, 2016). Atualmente é consultor de comunicação e política e editor na editora LeYa Brasil.
Sobre o Blog
Reflexões e análises sobre questões econômicas, sem economês, sob a ótica da economia política e seus impactos sobre a sociedade, a democracia, o capitalismo e as instituições.