O maior erro da Lava Jato não foi perseguir Lula, mas destruir empresas
Rodrigo de Almeida
09/11/2019 04h00
A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância está longe de gerar apenas efeitos jurídicos e institucionais. Ou ter forte impacto sobre a liberdade e o futuro do ex-presidente Lula e de outros cerca de 4.800 potenciais beneficiados pela mudança na jurisprudência. Ela é parte também de um freio de arrumação sobre a Lava Jato, algo importantíssimo não só para a solidez de valores e direitos democráticos como para a economia brasileira.
Sim, essa é uma questão também econômica.
Parece claro que a mudança de entendimento dos ministros do STF integra uma mudança de cenário também na forma como sociedade e instituições veem o modus operandi da Lava Jato e suas consequências. Aos poucos, foi ficando evidente que, em nome do necessário e fundamental combate à corrupção, excessos foram cometidos às pencas. Pela Lava Jato e pelo próprio Supremo.
Agora prevaleceu no STF o que está explicitamente escrito na Constituição: a execução da prisão passa a se dar depois do trânsito em julgado. É o que está, como norma, no inciso XVII do artigo 5º, uma cláusula pétrea da Carta. E é o que define o artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja constitucionalidade era julgada pelo tribunal.
Há quem fale em casuísmo na decisão desta semana, mas é preciso lembrar também o casuísmo que motivou a mudança anterior, que se deu em 2016, no calor do confronto entre pesadas pressões pró-impeachment. Mas deixo a análise política e institucional para tantos outros.
O ponto aqui é o econômico.
E nada melhor do que lembrar de um dos primeiros e fundamentais estudos sobre o modelo de combate à corrupção instaurado no Brasil: "O espetáculo da corrupção", livro do advogado Walfrido Warde, talvez o primeiro a descrever científica e racionalmente as consequências nefastas da Lava Jato (âncora principal desse sistema brasileiro de corrupção) para as instituições e para a economia.
Antes que as gralhas gritem, vale o alerta antecipado: nem Warde nem este blog defendem corruptos e a corrupção. Políticos e empresários corruptos devem ser punidos. Ponto.
Ter esta convicção, no entanto, não significa compartilhar com qualquer método destinado a puni-los, nem –principalmente– defender que, no afã de salvar o país da corrupção e do histórico de impunidade, adote-se um sistema que pune igualmente empresas geradoras de emprego e renda.
A essência da análise de Warde é: primeiro, a Lava Jato fez terra arrasada com setores inteiros da economia, e mesmo assim não acabou com a corrupção; segundo, seria possível depurar as empresas envolvidas em corrupção, sem destruí-las.
Conforme a tese do advogado, as empresas destruídas –e muitas outras ainda serão, pois ainda vivemos as consequências dos equívocos da Lava Jato– certamente não eram nada nobres. Seus gestores operavam, com os governos, a partir de práticas corruptas e odiosas. Mas eram nossas: davam empregos, geravam renda e garantiam o consumo. "Se era ruim com elas, ficou pior quando entraram em colapso", escreveu Warde.
Como ele lembra, a maior parte das empresas alcançadas pela Lava Jato eram donas de usina de geração de energia, estaleiros, estradas, aeroportos e outros empreendimentos de infraestrutura. Ou seja, compunham uma indústria que representava a espinha dorsal da economia brasileira. Sua desgraça causou a paralisia de obras, o impasse sobre o destino de projetos de infraestrutura e, o que é pior, a depreciação de muitos outros.
Em outros lugares do mundo civilizado, o combate à corrupção, em casos similares, foca nos gestores corruptos –políticos, acionistas e executivos envolvidos em crimes que se misturam às atividades regulares das empresas. Em bom português: mandam-se os bandidos para a cadeia ou fazem-se acordos punitivos para eles (no caso norte-americano, por exemplo, a Justiça prefere muito mais ter dinheiro pago em multas e punições do que enviar gente para as prisões).
No Brasil, não. A sanha punitiva se estendeu dos políticos para os empresários e, destes, para as empresas. O resultado foi devastador: em cinco anos, o setor industrial brasileiro não se recuperou dos impactos da Lava Jato. Cálculos sugerem que o Brasil teve, nos primeiros três anos da operação, cerca de 2,5 milhões de demissões relacionadas à operação, se contabilizados somente os números diretamente impactados pelo rompimento de contratos entre empreiteiras e a Petrobras.
Uma delas, a Odebrecht, chegou a empregar quase 200 mil pessoas. Era uma das mais eficientes empresas de engenharia pesada do mundo. Em qualquer outro país, seria protegida –política e institucionalmente– e seus dirigentes corruptos iriam para a cadeia. Aqui se acredita que deixar quebrar uma empresa com donos e/ou diretores corruptos é sinal de punição e evolução. Não é, garante Warde. Acreditar nisso não passa de uma vendeta emocional.
Como diz o advogado, não há trabalho sem empresa, não há empresa sem Estado e não há Estado sem trabalho e sem empresários. Um ataque às empresas, descuidado e devastador como o que assistimos nos últimos anos, arrisca de morte a economia e as instituições.
Em síntese, combater a corrupção não significa promover vingança e ir arrastando com essa vingança o desenvolvimento econômico somente alcançado por meio de empresas e setores relevantes da economia. Assim como qualquer ato ou sistema destinado a livrar o país da corrupção e de personagens corruptos precisa atender a requisitos fundamentais relacionados aos direitos individuais.
Os artilheiros de Sergio Moro, como afirmou Reinaldo Azevedo, não descansam. Mas é uma artilharia que certamente vem arrefecendo, e a decisão do Supremo desta semana revela-se um capítulo adicional deste arrefecimento.
Aos poucos, o Brasil percebe que boas intenções não significam compactuar com o vale-tudo.
Sobre o Autor
Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político, com doutorado em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Uerj e passagem como visiting scholar na The New School for Social Research, com estudos sobre as relações entre Estado, empresariado e variedades de capitalismo. Foi diretor de Jornalismo do iG, editor executivo do Jornal do Brasil, editor da revista Insight-Inteligência e diretor executivo e curador da Casa do Saber Rio, entre outros cargos. Trabalhou como assessor de comunicação do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy (2015), e como secretário de Imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff (2015-2016). Autor, entre outros livros, de À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff (LeYa, 2016). Atualmente é consultor de comunicação e política e editor na editora LeYa Brasil.
Sobre o Blog
Reflexões e análises sobre questões econômicas, sem economês, sob a ótica da economia política e seus impactos sobre a sociedade, a democracia, o capitalismo e as instituições.