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Rodrigo de Almeida

Mudança no programa Bolsa Família é um risco para mais pobres e miseráveis

Rodrigo de Almeida

18/09/2019 04h00

As últimas semanas mostraram que o programa Bolsa Família, na forma como o conhecemos, pode estar com os dias contados. Mais do que ter o Bolsa Família como alvo, o governo do presidente Jair Bolsonaro prepara uma revisão de programas que integram a rede de proteção social do país –uma reforma que, embora seja uma promessa de campanha, ainda envolve muito mais pontos de sombra do que de luz.

Apesar da previsível grita dos defensores do Bolsa Família, diante do risco iminente de cortes, o diagnóstico parece correto e vem de Sergei Soares, economista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Na sua avaliação, hoje há uma colcha de retalhos, com sobreposições de programas e benefícios, sem articulação. A unificação tenta eliminar as sobreposições e comprometer-se com o equilíbrio fiscal das contas do governo.

Já durante a campanha presidencial, estimulado por Paulo Guedes, então assessor econômico de Bolsonaro, Soares avisava: é preciso rever diversos benefícios sociais hoje pagos pela União e unificá-los. A equipe do candidato sugeria tanto a ampliação do programa, criando um "super Bolsa Família", quanto acabar com o abono salarial.

Em agosto, o economista publicou um estudo, que assina com Letícia Bartholo e Rafael Guerreiro Osório, batizado "Uma proposta para a unificação dos benefícios sociais de crianças, jovens e adultos pobres e vulneráveis". Agora sabe-se que o estudo é uma encomenda do governo para reformar a "assistência complementar" (liberais não gostam muito da palavra "social").

A proposta em discussão no governo é fundir quatro programas num único projeto: o Bolsa Família, o Salário-Família, a dedução por dependente para crianças no Imposto de Renda Pessoa Física e o abono salarial. Os quatro programas totalizam hoje R$ 52 bilhões.

O governo garante que não haverá corte de verbas, defendendo a premissa de que todos os que estão no Bolsa Família ou ficam melhor, ou ficam igual, segundo expressão usada pelo secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida.

Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e voz ativa na concepção do programa Bolsa Família no início do governo Lula, acha o contrário, e enxerga alto risco na ideia. Segundo ela, a unificação dos programas deve promover o fim de políticas assistenciais e o principal propósito é cortar gastos sociais.

A unificação não é ruim, ao contrário. O próprio Bolsa Família nasceu de uma ideia similar, ao juntar, em 2003, o Bolsa Escola Federal, o Bolsa Alimentação, o Cartão Alimentação e o Auxílio Gás – quatro programas herdados do governo Fernando Henrique Cardoso. Ao lado da criação do Cadastro Único, buscava-se evitar sobreposições e duplicidades no recebimento de benefícios e, portanto, aumentar a focalização dos programas.

É bom lembrar que, na época, os tucanos acusaram o então presidente Lula de tentar reinventar a roda para apagar os feitos de FHC. E que o próprio PT atacou ferozmente o programa, criticando a focalização prevista na base dos programas de transferência de renda defendidos pelo Banco Mundial –a esquerda petista apostava na universalização como premissa de uma política social democrática e eficaz.

Provas adicionais de quantas voltas o mundo dá: na proposta de unificação de Sergei Soares, prevê-se um benefício universal, a ser pago com R$ 45 por criança e jovem com menos de 18 anos de idade, independentemente da renda familiar. Segundo o estudo do Ipea, a universalidade "evita estigmas, constrói uma coalisão mais ampla de forças em sua defesa e promove a percepção simbólica de que as crianças e adolescentes, independentemente de suas características econômicas, sociais ou individuais, são valorizados pelo Estado".

Em bom português: a meta é atrair simpatia da população.

O cenário mais perigoso aqui é a diluição e, até mesmo, a redução dos recursos direcionados aos segmentos que mais precisam do Bolsa Família. Embora o governo negue, o próprio estudo do Ipea admite perdedores.

"Muitas famílias pobres que hoje recebem o BSP [Benefício da Superação da Extrema Pobreza] verão seus benefícios caírem. São famílias que vivem em contextos de muita escassez e para quem quedas no benefício podem ser drásticas", explicam os pesquisadores. As perdas podem chegar a 8,8 milhões ou 9,4 milhões de famílias, dependendo do modelo adotado pelo governo.

Dá para fazer um estrago na vida de quase 26 milhões de pessoas.

Reformas desse tipo, e da maneira como o governo vem conduzindo, caem no mesmo tipo de problema de risco de imagem quando nascem no meio de um problema fiscal grave e são concebidas por uma equipe econômica liberal, disposta a qualquer sacrifício em nome do equilíbrio fiscal. Nos dois casos, a convicção natural de quem recebe a notícia é de que a motivação principal da reforma é menos a eficácia da política social e mais a economia nas contas do governo.

A ex-presidente Dilma Rousseff entende bem desse problema. Assim que iniciou o seu segundo mandato, coube a seu novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, anunciar medidas impopulares para reequilibrar as contas públicas, alterando regras na concessão do seguro-desemprego, pensão por morte, abono salarial e seguro-defeso (pago a pescadores no período de proibição da pesca).

Dilma e Levy passariam meses tendo de se explicar que buscavam ali correções nas políticas de seguridade social, para evitar distorções e excessos, e não estavam tirando direitos de trabalhadores. E o ministro da Fazenda entraria definitivamente no índex da esquerda e, em particular, do PT.

Agora, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes podem ter de enfrentar a mesma coisa. Sobretudo quando o país tem, em sua memória recente, a proposta inicial da reforma da Previdência, quando a equipe de Paulo Guedes propôs a tunga do Benefício de Prestação Continuada, que dá um salário mínimo aos miseráveis que têm mais de 65 anos de idade.

Era uma ideia engenhosa: dava R$ 400 ao miserável a partir dos 60 anos –um alívio para quem recebe, no máximo, R$ 371 pelo Bolsa Família– mas, com a outra mão, pretendia tomar pelo menos R$ 598 mensais dos miseráveis com mais de 65 anos. Estes só teriam o direito ao salário mínimo se, e quando, chegassem aos 70.

Três coisas, portanto, Bolsonaro precisará provar:

  1. Vai mudar o Bolsa Família para remover a marca petista e iniciar uma nova, ou apenas aperfeiçoá-lo?
  1. A unificação de programas será, de fato, para reduzir fragmentação e sobreposições de iniciativas ou uma forma marota de reduzir gastos escondendo quedas explícitas?
  1. Qual conta valerá para aqueles que mais precisam (os pobres e miseráveis que precisam de mais renda, e não menos)?

Na primeira questão, não é demais lembrar que, há poucas semanas, um integrante da equipe econômica defendeu a mudança do Bolsa Família para que o governo possa construir uma "marca social".

Na segunda questão, convém ressaltar: um dos méritos do Bolsa Família é, justamente, o seu foco, garantindo transferência de renda para as famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, combatendo a fome, superando suas condições de privação e promovendo o acesso à rede de serviços públicos –em especial os de saúde, educação, segurança alimentar e assistência social.

Para a terceira questão, recorro a outro estudo do Ipea, também divulgado em agosto, e também assinado por Sergei Soares (neste caso, com Pedro H. G. Ferreira de Souza, Rafael Guerreiro Osorio e Luis Henrique Paiva), cujo título é "Os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: Um balanço dos primeiros 15 anos". Na conclusão: o programa foi o principal responsável por reduzir em 15% a pobreza e em 25% a extrema pobreza. Efeito de um salto no número de beneficiários –de 6 milhões de famílias, em 2004, para 13,3 milhões de famílias, em 2017.

Segundo os pesquisadores, os desafios permanecem, pois 64% dos beneficiados pelo programa continuam em situação de extrema pobreza. Isso pode ser explicado pelo valor médio transferido mensalmente para cada família –cerca de R$ 180 em 2017. "O valor modesto", escreveram os pesquisadores, "impede que o programa seja ainda mais eficaz no combate à pobreza no país".

Eis o ponto que a reforma em gestação no governo agora não alcança. Sobretudo porque a unificação de 2019 é bem diferente daquela de 2003: juntam-se focos distintos, pois o Bolsa Família se destina às famílias pobres e extremamente pobres, enquanto a redução de dependentes do Imposto de Renda tem como alvo setores médios e altos da sociedade, que são tributados nas rendas que recebem. Além disso, Salário-família e o abono salarial destinam-se aos trabalhadores formais, com carteira assinada.

Até que as dúvidas sejam removidas e eventuais mudanças, plenamente debatidas, convém ficar de olho. Na dúvida, aposte-se na ameaça ao Bolsa Família e no risco de os mais pobres pagarem a conta do reequilíbrio fiscal.

A íntegra do estudo do Ipea pode ser lida aqui.

Sobre o Autor

Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político, com doutorado em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Uerj e passagem como visiting scholar na The New School for Social Research, com estudos sobre as relações entre Estado, empresariado e variedades de capitalismo. Foi diretor de Jornalismo do iG, editor executivo do Jornal do Brasil, editor da revista Insight-Inteligência e diretor executivo e curador da Casa do Saber Rio, entre outros cargos. Trabalhou como assessor de comunicação do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy (2015), e como secretário de Imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff (2015-2016). Autor, entre outros livros, de À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff (LeYa, 2016). Atualmente é consultor de comunicação e política e editor na editora LeYa Brasil.

Sobre o Blog

Reflexões e análises sobre questões econômicas, sem economês, sob a ótica da economia política e seus impactos sobre a sociedade, a democracia, o capitalismo e as instituições.

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