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Rodrigo de Almeida

Acordo UE-Mercosul: Bolsonaro erra, mas Macron não é o mocinho da história

Rodrigo de Almeida

09/10/2019 04h00

O anúncio da França de que se recusará a ratificar o acordo entre a União Europeia e o Mercosul é o típico exemplo dos riscos econômicos impostos por uma diplomacia presidencial baseada na agressividade, na provocação e no isolacionismo. A conta vai chegar, está chegando, e não apenas na forma de críticas públicas, vexame internacional e coisas do gênero. O efeito é prático e danoso para exportadores, para o agronegócio e para a reputação do país.

Mas não nos enganemos: franceses e irlandeses sempre foram os mais céticos em relação à iniciativa e estão se aproveitando dos problemas da política ambiental do governo Bolsonaro para negar o acordo. A tese da "Amazônia em chamas" é uma forma internacionalmente elegante, ambientalmente forte e politicamente convincente para Emmanuel Macron fazer agrados no plano doméstico.

"Não podemos assinar um tratado comercial com um país que não respeita a floresta amazônica, que não respeita o Tratado de Paris [do clima]", disse a ministra francesa do Meio Ambiente, Elisabeth Borne. "A França não assinará o acordo do Mercosul nessas condições".

Ótimo para Macron, mas excelente para os agricultores franceses, sempre nutridos à base de subsídios e claramente temerosos frente à concorrência brasileira e argentina. Em outras palavras: o pior erro de análise neste caso será enxergar a negaça da França com as cores da polarização. E não faltarão vibrações dos dois lados.

Do lado ambiental, enxergarão na recusa francesa a prova da culpa da (reconhecida) incapacidade do governo Bolsonaro de resolver o problema das queimadas da Amazônia e de uma política ambiental questionável – naquela região, a ação governamental age em nome especialmente do lobby de mineradoras.

Do lado do governo, ao seu estilo belicoso e desrespeitoso, possivelmente virão reações ao gesto do governo francês. Mas, na prática, para muitos observadores da política externa e comercial de Bolsonaro, como a economista Monica de Bolle, o governo não se importa muito com o acordo – o que torna um pouco inexplicável a euforia que se seguiu ao anúncio, no fim de julho. Muito barulho por quase nada?

É grande a tentação de adotar o estilo "ou pau, ou pedra, ou o fim do caminho", próprio das reações polarizadas do momento, mas neste caso há matizes relevantes que precisam ser levados em conta.

Primeiro: a lembrança de que os agricultores franceses se opõem ao pacto UE-Mercosul. O que Macron fez em agosto, na sua providencial reação ao tema da Amazônia, foi unir agricultores e ambientalistas – estes, sabemos, detestam o presidente brasileiro. França, Polônia e Irlanda são tradicionalmente protecionistas em agricultura e temerosos da concorrência do Mercosul.

Segundo: é preciso olhar não só para a França, mas também para os alemães, um dos grandes defensores do acordo mas que tem hoje o movimento ambientalista mais influente do mundo. Tanto associações da indústria alemã, de olho no grande mercado do Mercosul, quanto o Ministério das Relações Exteriores alemão têm trabalhado para evitar o descarrilamento do acordo. A diplomacia alemã enxerga na América Latina um parceiro importante na defesa do multilateralismo, como um sinal de repúdio à política protecionista de Donald Trump. Mas a parcela ambientalista do governo alemão resiste.

Do que deriva o terceiro importante matiz a ser considerado: a retórica bolsonarista agrava, estimula, alimenta a reação dos contrários ao acordo. Retórica radical, na diplomacia, só inviabiliza ratificação de qualquer acordo, simples ou complexo. "Bolsonaro realmente não nos ajuda. Não o entendo", chegou a dizer, não faz muito tempo, um diplomata alemão ao jornal "El País". Não foi à toa que os próprios líderes do agronegócio brasileiro começaram a pressionar o governo para moderar seu discurso e adotar uma postura ambiental mais pragmática.

Estava escrito, em alertas sugeridos por gente respeitável, como o embaixador Rubens Ricupero: a atitude final de países como França e Alemanha dependeria do comportamento das autoridades brasileiras nos meses seguintes ao anúncio do acordo. O risco agora é perder o maior acordo assinado pelo Brasil em quatro décadas – depois do pacto que estabeleceu o Mercosul, o Brasil tinha parcerias apenas com economias menores, como Israel e Egito, ou alguns países da América do Sul, como Chile, Peru e Colômbia. Nada de EUA, China, União Europeia e Japão.

Como o próprio Ricupero lembrou, em poucos meses de vida, o governo criminalizou os fiscais do Ibama e do Instituto Chico Mendes, desmantelou as instituições de controle do desmatamento e encorajou a ação criminosa dos desmatadores. Esse tipo de comportamento significa oferecer munição aos negociadores estrangeiros, dando-lhes pretexto para frear qualquer acordo.

Como seria pouco provável uma mudança fundamental na política ambiental do governo, restaria torcer por duas coisas: um processo rápido de ratificação do acordo e menos bravata de Bolsonaro. Vale o óbvio: o silêncio e a moderação sempre foram a alma do negócio em matéria diplomática.

Nenhuma coisa nem outra haverá de ocorrer, então os prognósticos podem ser bastante pessimistas a partir daqui: é provável que o acordo seja suspenso devido à quebra dos compromissos brasileiros no plano ambiental e, se as previsões se confirmarem, o Brasil terá uma crise inédita e sem precedentes no Mercosul.  Mas duvido que o presidente Jair Bolsonaro esteja preocupado com isso.

A esperteza política de Macron no caso não exime Bolsonaro de sua responsabilidade. Ele precisa ter consciência de que discurso e prática presidencial têm consequências econômicas concretas. Não esqueçamos dos anúncios de boicote a produtos brasileiros, por países como a Áustria, e por empresas europeias. Ou que, pouco antes da ida do presidente à ONU, 230 fundos de investimentos, que geram ativos na casa de US$ 16,2 trilhões, externaram preocupação com a Amazônia.

Quem os conhece por dentro sabe: uma manifestação assim surge não espontaneamente, ela nasce da pressão de investidores sensíveis às causas ambientais.

 

Sobre o Autor

Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político, com doutorado em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Uerj e passagem como visiting scholar na The New School for Social Research, com estudos sobre as relações entre Estado, empresariado e variedades de capitalismo. Foi diretor de Jornalismo do iG, editor executivo do Jornal do Brasil, editor da revista Insight-Inteligência e diretor executivo e curador da Casa do Saber Rio, entre outros cargos. Trabalhou como assessor de comunicação do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy (2015), e como secretário de Imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff (2015-2016). Autor, entre outros livros, de À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff (LeYa, 2016). Atualmente é consultor de comunicação e política e editor na editora LeYa Brasil.

Sobre o Blog

Reflexões e análises sobre questões econômicas, sem economês, sob a ótica da economia política e seus impactos sobre a sociedade, a democracia, o capitalismo e as instituições.

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