Lula mostrou que suas ideias econômicas envelheceram
A primavera lulista mostrou que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu a economia como o principal polo de oposição ao governo de Jair Bolsonaro e âncora do discurso para 2022. Mas caso se confirme o protocolo de intenções exibido no discurso em São Bernardo, no sábado (dia 9), Lula, o PT e a parcela da esquerda abraçada a eles deveriam conter a euforia e se preparar melhor para o debate que virá.
O que se viu na fala inicial após a liberdade recém-conquistada foi um rosário de ideias envelhecidas no campo econômico – problema de que o PT padece desde bem antes da última eleição presidencial. Lula e seu partido podem ter renascido como oposição, mas se quiserem liderar a esquerda rumo a 2022, precisarão reoxigenar seu programa, sair da mesmice e deixar de olhar o futuro com promessas do passado.
Como anotaram os editores do Relatório Reservado, Lula "reabriu seu antiquário de ideias", demonstrando repetir velhos pontos de vista e argumentos. Não foi só o tempo de prisão que lhe fez mal. Especialmente na área econômica, faltam-lhe ideias bem oxigenadas, inovadoras e compatíveis com a mudança exigida pelos novos tempos.
Não me refiro aqui apenas ao modo como escolheu tratar um de seus alvos permanentes daqui para frente – além de Sergio Moro, Lula definiu como inimigo o ministro da Economia, Paulo Guedes, tratado como "entreguista", "inimigo do povo", "demolidor de sonhos", "destruidor de empregos e de empresas públicas brasileiras".
Esta é uma questão de como esta esquerda projeta o futuro e demonstra renovar (ou não) o pensamento e a prática diante dos desafios do século XXI.
O risco maior é repetir a linha adotada em 2018, quando a campanha petista parecia meramente pregar a "volta de Lula", no sentido simbólico e também prático: replicava a mesma estratégia de governo nos tempos de Lula, como se ignorasse os novos parâmetros de problemas existentes no país. Retomava a pauta de programas emergenciais – Bolsa Família incluído – associada à virtude de investimentos industriais e financeiros que fizeram a festa em períodos anteriores.
Agora Lula e o PT têm a chance da renovação não cumprida em 2018, mas resta saber se exibirão vontade e competência para promovê-la até 2022. Pelo que se viu no discurso de São Bernardo, ainda estão longe disso. Bem longe.
Não sou conselheiro deles, mas se fosse lhes sugeriria a leitura de uma das últimas entrevistas que o professor Wanderley Guilherme dos Santos – o mais importante cientista político brasileiro de nosso tempo – concedeu antes de morrer em seu apartamento no Rio de Janeiro, no dia 25 de outubro. Naquela que foi talvez sua última intervenção pública, Wanderley disse ao jornalista Miguel do Rosário: a esquerda precisa se informar melhor da chegada de uma nova corrente de ideias econômicas, que vem abalando a discussão dentro do seio liberal.
O professor se referia ali aos artigos do economista André Lara Resende, que passou a divergir radicalmente da posição de outros economistas liberais. "São artigos brilhantes e sóbrios, com argumentos bem articulados e que efetivamente trazem um desafio muito grande à ortodoxia monetarista tradicional", disse Wanderley.
Segundo ele, "as organizações e partidos de centro-esquerda deveriam tomar consciência e se informarem mais profundamente destas disputas que estão ocorrendo dentro das direitas e do centro, buscando diálogos e formando alternativas políticas que seriam obviamente muito menos dolorosas do que estão sendo as políticas atualmente em curso no país".
Para ele, a centro-esquerda brasileira oficial não tem sido capaz de formar uma coalizão entre atores políticos relevantes, nem formular alternativas viáveis do ponto de vista político, como as ideias econômicas apresentadas por André Lara Resende. "São políticas perfeitamente discutíveis para a construção de uma coalizão progressista, democrática e menos antipopular do que a que temos agora", afirmou o professor.
Em diversos ensaios publicados originalmente no jornal Valor Econômico e depois estendidos e aprofundados em livro, André Lara Resende promoveu uma fratura no pensamento liberal brasileiro ao defender uma nova teoria monetária. Para ele, é preciso rever o dogmatismo fiscal que o pensamento ortodoxo liberal adotou. Responsabilidade fiscal, diz, não pode ser confundida com dogmatismo. O importante não é equilibrar o orçamento no curto prazo a qualquer custo, mas tributar e investir bem.
No âmbito internacional, há uma percepção crescente de que a teoria macroeconômica está em profundo questionamento, tanto pela insuficiência de seus diagnósticos quanto pela ineficácia das políticas que prescreve. Depois da crise de 2008, muita esperança foi depositada na política monetária e, ainda que esta tenha ido ao limite, colocando as taxas de juros em patamares mínimos, os efeitos sobre a economia mostraram-se insuficientes.
André Lara Resende também vem expressando dúvida se os juros altos são causados pelo déficit fiscal ou se são os juros que causam o déficit. Não foram poucos os economistas de linhagem liberal que o criticaram. Para o economista, a agenda de Paulo Guedes está na direção correta, mas a obsessão por equilibrar as contas públicas no curto prazo gera uma punição indevida sobre a população.
Estados e municípios estão quebrados, asfixiados, sem capacidade de prestar serviços essenciais à população. Foram fiscalmente irresponsáveis no passado, sim, mas isso não justifica o estrangulamento fiscal a que estão sendo submetidos – "a população não pode ser punida por irresponsabilidade dos políticos", disse recentemente Lara Resende. O risco apontado por ele é que o dogmatismo fiscal (a obsessão de equilibrar as contas) poderá levar a uma reação política e social capaz de derrotar a agenda liberal.
É aí que entra a recomendação de Wanderley Guilherme dos Santos para que a centro-esquerda observe em profundidade a análise de um dos pais do Plano Real. O pensamento lulo-petista costuma cegar diante dos grandes feitos de seus governos, uma cegueira que os impede, por exemplo, de reconhecer erros adotados em certas práticas. E, como afirmou Guilherme Boulos, em bela entrevista a Jamil Chade, aqui no UOL, "uma esquerda que não reconhecer seus erros não pode apontar futuro".
Como afirmou o próprio Wanderley Guilherme dos Santos, a despeito de todos os avanços no campo dos direitos e na elevação da renda de pobres e miseráveis, os governos petistas não foram capazes de preparar o Brasil para os desafios do século XXI, nem criaram condições para o país enfrentar as nações produtoras de tecnologia pós-revolução digital.
Sem diagnósticos como o de André Lara Resende, sem projetos que mirem o futuro e com a repetição de padrões e chavões expostos no retrovisor, a esquerda depende de Lula tende a repetir as mesmices pouco criativas e inovadora.
Conclusão: a esquerda carece não só da leitura de André Lara Resende, como também, e sobretudo, de Wanderley Guilherme dos Santos.
Formador de muitos cientistas sociais, Wanderley foi um precursor na defesa da democracia, defensor intransigente de um modelo de sistema representativo e um pensador original, capaz de fazer seus pares reverem ideias estabelecidas. Era o que exibia com brilhantismo em suas palestras, na revista Insight-Inteligência, que criou juntamente com o jornalista Luiz Cesar Faro (e na qual tive o privilégio de sucedê-lo, por indicação do próprio), em livros, artigos e entrevistas, nos quais revisava o lugar-comum vigente e desabonava, com sua inteligência, o pensamento limitado daqueles que se revelam convictos da própria virtude.
Que a esquerda o releia e o relembre.
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